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Muito mais que borboletas amarelas: García Márquez jornalista

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Por Vicente Alfonso O escritor Gabriel García Márquez no escritório de Bogotá da agência cubana de notícias Prensa Latina, 1959. Foto: Hernán Díaz.   Em La invención de la crónica (1992), Susana Rotker observa que “mais da metade da obra escrita de José Martí e dois terços da de Rubén Darío são constituídos por textos publicados em jornais, porém a história literária tem centrado o interesse basicamente em suas poesias.” Precisão semelhante pode ser aplicada a Gabriel García Márquez: além de escrever e publicar dez romances, quatro volumes de contos, uma peça de teatro e um volume de memórias, Gabo desenvolveu uma prolífica e ousada carreira jornalística. Entre 1948 e 1999 publicou centenas de artigos, resenhas, crônicas e reportagens que, compilados em cinco volumes, totalizam 3.288 páginas. Esses cinco volumes contêm histórias verdadeiras que comovem e entusiasmam tanto quanto suas melhores ficções. Na passagem dos dez anos da morte do escritor Prêmio Nobel da Literatura de 1982, a

“Os delinquentes”. Querer viver ao contrário

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  Por Iván Tarrés     Mas eu diria aos meus semelhantes e de uma vez por todas: na medida do possível, vivam livres e sem compromisso. Não importa se você está em uma fazenda ou na prisão do condado.   — Henry David Thoreau, Walden   Levante a mão quem nunca alguma vez amaldiçoou os bancos. Difícil não o fazer, pelo menos quando percebemos que nos descontaram aqueles 0,03 centavos, o que, sim, pode não ser uma fortuna, mas é inevitável pensar na soma de todas essas poucas “moedas” de cada cliente e como elas servem para torná-los milionários. Porque por mais que o setor bancário lamente , a realidade é que sempre sai com lucros exorbitantes. “O banco nunca perde”, diz-se, e sem dúvida isso sempre alimenta a suspeita e a antipatia para com os guardiões do nosso dinheiro. Um terreno fértil, em suma, do qual a literatura e o cinema se utilizaram em inúmeras ocasiões —   também a partir de acontecimentos reais —, fazendo com que os bancários levantassem a mão, nestes casos.   Destinatári

As ilhas e a literatura, um elo infinito

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Por Alfonso Aguirre Muñoz Antoine Watteau. Le Pèlerinage à l'île de Cythère.   “No princípio era o verbo”. Em torno do verbo, que é o início da consciência, sempre existiu o ambiente. Palavra e ambiente, entre a imaginação e a realidade, dialogam incessantemente, uma alimentando a outra. O princípio é origem no tempo e origem da natureza, da materialidade, do cosmos, da terra, da água. Tempo, espaço e sentido andam de mãos dadas.   As ilhas têm sido um território fértil para a inspiração. Representam mesmo um ambiente de segunda ordem: o sujeito rodeado de terra e ao redor de ambos o mar, só do mar. O centro se lança à periferia, oferecendo o distanciamento que permite a abstração. As ilhas são cenários que provocam reflexão sobre o sentido da vida, inspiram ilusões, desafiam aventureiros, iluminam propósitos e, por fim, alimentam a literatura. Além do divino, o verbo em seu contexto é a essência da chave literária e da filosofia.   Existem dois exemplos paradigmáticos de como a p

Monique Malcher e os monstros que habitam a noite em “Flor de gume”

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Por Henrique Ruy S. Santos Monique Malcher. Foto: Arquivo CBL. Monique Malcher, nascida em 1988 na cidade de Santarém, no estado do Pará, é escritora e artista plástica, com formação nas áreas de Jornalismo e Antropologia. É uma profícua autora de zines , gênero que, por sua inerente marginalidade em relação ao mercado editorial mainstream , ainda encontra pouca repercussão entre a crítica dita especializada. A sua estreia no formato mais tradicional e mais conhecido do livro se deu com Flor de gume , em 2020. Trata-se de uma coletânea de contos que tem chamado cada vez mais atenção tanto da crítica quanto do público geral, ambos compelidos, em parte, pela contemplação do livro com o Prêmio Jabuti em 2021, mas também pelo esforço braçal e miúdo de circulação da obra entre grupos de leitura de mulheres e grupos de estudo.   A escrita penetrante de Flor de gume , prenunciada desde o próprio título, não é avessa à narração do acontecimento cotidiano, muitas vezes marcado pela violência ur

Boletim Letras 360º #579

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Cristovão Tezza. Foto: Guilherme Pupo LANÇAMENTOS   Cristovão Tezza reescreve e publica seu primeiro romance; inspirado nos anos em que fez parte de uma comunidade de teatro, e uma sociedade alternativa, liderada pelo escritor e dramaturgo W. Rio Apa .   Antes de se tornar o renomado romancista, cronista e crítico que é hoje — com uma impressionante lista de livros publicados e laureado com vários dos principais prêmios da literatura brasileira, como o Prêmio Jabuti, Prêmio São Paulo de Literatura e Prêmio Literário Biblioteca Nacional —, Cristovão Tezza, durante os anos de 1968 a 1976, fez parte de uma comunidade de teatro, no litoral do Paraná, liderada pelo escritor, dramaturgo e teatrólogo W. Rio Apa (1925-2016). Da rica experiência comunitária, de onde se firmou o seu fascínio pelo mundo artístico e literário, nasceu Ensaio da paixão , romance com fortes traços autobiográficos, lançado originalmente em 1986, e que agora ganha uma nova edição revista pelo autor. A partir de sua viv

Quatro pessoas

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Por Alejandro Zambra Jacob Lawrence. The Businessman   Quão solitário é o trabalho de um escritor?   Pergunta-me um amável desconhecido, por pura curiosidade, ao fim de uma sessão de leituras. Respondo vacilante, não estou seguro. Penso no lugar-comum do escritor trancafiado por muitas horas, lutando com suas convicções, com seus desejos. Lembro-me deste fragmento tão dramático e de certa forma cômico em que Kafka confessa o desejo de isolar-se em uma caverna, apenas com uma lâmpada e seus materiais de escrita: “Haveriam de trazer-me a comida e a deixariam sempre longe de onde eu estava instalado, atrás da porta mais externa da caverna. Ir buscá-la, em roupa de dormir, passando por todas as abóbadas, seria meu único passeio.”   Ao escrever ficamos ausentes do mundo e por vezes dias inteiros se passam em que saímos apenas para comprar cigarros ou levar o cachorro para passear (e costuma ser o cachorro que nos leva para passear). Mas não estou certo de que escrever seja um ofício solitár