Graham Greene, paixão pelos sonhos

Por Rafael Narbona



Graham Greene foi um grande pecador obcecado pela santidade e pela virtude. Segundo a minuciosa e exaustiva biografia de Norman Sherry, The Liefe of Graham Greene, o escritor visitava sua amante Lady Catherine Walston, quando estava havia convidado a sua mansão um padre católico. Deste modo, podia cometer adultério e pedir imediatamente a absolvição por meio do sacramento da confissão.

Apaixonado pelos excessos e o luxo, Greene visitou a China durante a Semana Santa de 1957. Antes de partir, escreveu às autoridades católicas irlandesas para oferecer seus serviços como espião num país que tratava sem contemplações os missionários. Seu propósito de servir à Igreja não o desviou de seus costumes. Pediu aos seus guias chineses que o ajudassem a conseguir ópio e lhe proporcionassem para sua companhia jovens mulheres que preenchessem a ingrata perspectiva de uma cama vazia.

Afetado pelo transtorno bipolar, Greene fantasiou desde jovem o suicídio. Sua morte na Suíça em 1991 sugere que recorreu à eutanásia para interromper o sofrimento causado pelo insidioso câncer, ignorando a postura da Igreja católica sobre esta questão. Sua incapacidade de servir como um católico exemplar, só competia com sua necessidade de compreender os grandes mistérios da fé: o pecado, a culpa, o perdão, a eternidade, a redenção, a santidade.

O poder e a glória, indiscutivelmente sua obra mais ambiciosa e perfeita, aborda o conflito plantado pelo confronto entre um pecador que morre como um santo e um ateu incorruptível que atua como julgador de crentes, aceitando a imolação de inocentes para materializar um ideal. O pecador é um padre de um povo, um apaixonado pelo álcool e incapaz de respeitar seu voto de castidade, apelidado o “padre uísque”. O espírito incorruptível é um tenente do exército mexicano que participa na perseguição à Igreja católica desencadeada em Tabasco pelo governo Tomás Garrido Canabal. Com sangue indiano, possui um caráter enérgico, desprendido e tenaz. Nunca pensa em si próprio. Sua única preocupação é acabar com a miséria dos camponeses, explorados pelos latifundiários e pelas grandes companhias comerciais, com a cumplicidade da Igreja católica, que invita à obediência, à resignação e o comodismo. Sua integridade e sua ferocidade evocam o terror revolucionário imposto por Robespierre, segundo o qual “castigar os opressores da humanidade é clemência; perdoá-los, barbárie”.

Durante seu mandato, o governo de Canabal ordenou o fechamento das igrejas e a destruição de suas imagens; obrigou os padres a escolher entre o casamento e o pelotão de fuzilamento; secularizou os cemitérios, proibiu as festas religiosas e mudou os nomes dos povoados que aludiam aos santos, virgens ou mártires, rebatizando-os por nomes de heróis, educadores ou libertadores. Seu anticlericalismo chegou ao extremo de proibir a palavra “adeus”, colocando em seu lugar “tchau”. Proprietário de uma fazenda, batizou um burro catalão com o nome de “o Papa”, um boi com o de “Deus” e uma vaca com o de “Virgem de Guadalupe”. Um de seus porcos se converteu em “São José”. Três de seus filhos não tiveram melhor sorte, pois tiveram como nomes Zoila Liberdade, Lênin e Luzbel. “Macho na guerra e na paz”, recuperando as observações de Manuel González Calzada, proibiu o álcool e ordenou expor em grandes árvores ladrões e estupradores conseguindo que a taxa de delitos diminuísse consideravelmente.

Graham Greene ambienta O poder e a glória nessa época e tudo indica que transferiu algumas das características de Canabal para o tenente sem nome de seu romance, fazendo sua personagem mais humana, eximindo-o do narcisismo e da crueldade do governador de Tabasco. Ao que parece, o “padre uísque” se baseia nas histórias contadas pelo afável doutor Fitzpatrick em Villahermosa sobre um padre com uma conduta um pouco exemplar, de acordo com a informação proporcionada pelo próprio escritor em sua obra Os caminhos sem lei, um livro de viagens que relata sua passagem pela Cidade do México, Veracruz, Chiapas e Tabasco, entre outros lugares.

O México não cativou o escritor inglês: “Não havia em todo este país nada tão belo como aldeia inglesa, mas por outro lado a beleza só é uma emoção do observador, e talvez para alguém dessas selvas e desses barrancos, esses índios reservados e calmos, esses rebanhos de mula que desciam da colina podiam produzir uma sensação de beleza”. Greene viajou ao México em 1938, quando a perseguição religiosa havia acalmado, mas não as pegadas de um conflito que se transformou em guerra entre 1926 e 1929 (a famosa Cristiada), deixando um saldo de 250 mil vítimas e um número semelhante de exilados.

Já se acusou Greene de arrogância e desdém pelo povo mexicano em Os caminhos sem lei. Parece difícil rebater a acusação. “Nenhuma esperança em nenhuma parte – escreve, triste; nunca estive num país onde alguém tenha mais consciência, em todo momento, do ódio”. Depois de presenciar uma briga de galos, anota: “Acredito que nesse dia comecei a odiar os mexicanos”. As bombas lançadas durante um festejo popular não lhe casam melhor impressão. “É esta infantilidade, esta imaturidade, o que mais me irrita do México. Os adultos não podem se encontrar nas ruas sem começar a boxear como alunos. Há que ser uma criatura para entrar no reino dos céus, assim dizem, mas estes já passaram da infância e permanecem para sempre numa cruel e anárquica adolescência”.

O poder e a glória, que foi publicado anos mais tarde, mostra uma perspectiva diferente da sociedade mexicana, cheia de respeito e empatia. Que mudou neste tempo? Seria fácil atribuir ao contraste ao talento maníaco-depressivo do escritor, mas é possível que tenha acontecido algo mais profundo. Em Os caminhos sem lei, Greene havia elogiado o culto à Virgem de Guadalupe, mas também havia destacado que as mulheres da burguesia entretinham os bispos sem se preocupar com a sorte dos trabalhadores cujo salário não superava os trinta e cinco centavos por dia.

O Greene de Os caminhos sem lei é um viajante que lança um olhar superficial sobre uma cultura estrangeira, incapaz de deixar as aparências para chegar mais ao fundo. Sua fé é superficial, pueril, mas quando encara o sofrimento dos trabalhadores, adquire uma fugaz clarividência, advertindo que o rosto de Deus se revela na dor dos povos crucificados. Essa lucidez se torna obsessão insuportável em O poder e a glória, assumindo a carga de hipocrisia e presunção que cega europeus e estadunidenses para entender um mundo transbordando de ternura e coragem, onde o ser humano luta para preservar sua dignidade, apegando-se às crenças elementares, como a fidelidade à Deus, à família e à comunidade.

Os estrangeiros que se mudam para Tabasco – Sr. Trench, dentista; Fellows, capitão da marinha mercante; Sr. Lehr, um pacifista alemão – vivem cercados pela solidão e o vazio. Ao contrário, os camponeses mexicanos são leais, majestosos e estoicos. Protegerão ao “padre uísque”, depreciando os seiscentos pesos de recompensa oferecidos pelas autoridades. Podem trocar um peso num tratamento, mas não delatar um homem perseguido, embora o reconheçam entre um grupo de presos e a polícia os ameace a identificá-lo, se não quiserem ser mortos. Morrerão calados, sem protestar, humilhar-se ou maldizer a Deus. Seria tentador relacionar sua forma de atuar com o fanatismo, mas o que verdadeiramente os move é um trágico fatalismo, onde, paradoxalmente, ainda há espaço para a esperança. 

Os pasquins com a cara do “padre uísque” também mostram o rosto de um bandido estadunidense, que cometeu roubos e assassinatos. O foragido não é como o povo mexicano. Não conhece a esperança. Não é uma alma perversa, mas desesperada, que percebe o mundo como algo absurdo e sem sentido. O tenente o considera menos daninho que os padres, pois vive como um homem e não como um inseto, chupando o sangue a seus paroquianos. Mata suas vítimas, mas não as engana com falsos afetos, nem as seduz com repulsivas quimeras.

O tenente é um ateu beligerante, mas pensa como um teólogo, contempla o sexo com indiferença e vive como um padre num quarto sombrio e sem apetrechos, com aspecto de uma cela, recusando qualquer vantagem ou privilégio. No fundo, se parece com o bandido estadunidense em seu desespero. Guarda “a certeza absoluta da existência de um mundo que morre e se esfria, com seres humanos que evoluíram desde animais sem objetivo nem razão nenhuns”.

A fé é uma utopia política que acabará com a pobreza e a desigualdade salva de cair no niilismo, mas o preço de prejudicar gravemente sua humanidade. Para conseguir um mundo mais justo está disposto a convertê-lo num deserto e começar desde o zero, como fez com sua vida. Enterrou sua infância de menino pobre e esqueceu sua adolescência. Para ele, só existem os últimos cinco anos, consagrados a transformar Tabasco num estado livre de injustiças, miséria e superstições. Não teme a morte. É muito pior a indignidade, como a do padre José, que aceitou casar-se para não ser justiçado e agora suporta as provocações das crianças. Embora não empregue a palavra “martírio”, pensa que a imolação por uma causa é a melhor prova de seu valor. Uma ideia só é respeitável quando desperta a capacidade de sacrifício. Pesar haver fuzilado reféns inocentes, mas o indivíduo apenas conta quando se luta por criar um mundo novo. Greene define sua atormentada personagem como “uma figura de ódio portadora de um segredo de amor”.



O “padre uísque” não se parece com o tenente. Não odeia o bem-estar, nem a segurança. Desfrutava de sua posição privilegiada que lhe permitia viver com tranquilidade e sem sacrifícios. Sucumbiu à tentação da carne e engendrou uma filha, Brígida. Sente afeto por ela, mas nunca planejou assumir suas obrigações paternas. Sente-se culpado por seus pecados, mas sabe que o pecado mais grave e imperdoável não é a luxúria, a vaidade ou a ganância, mas a perda de esperança. A vida é um dom, um inestimável presente, e devemos amá-la, não a maldizer. O temor e falta de esperança o impulsionam aos braços de Maria, mãe de Brígida. Não pode odiar a menina, mas tampouco amá-la sem levar-se pela vergonha.

Sua filha tem apenas sete anos e não sabe que é um verdadeiro lar, como de alguns padres que se amam e respeitam. Isso explica sua malícia, seu desapego, sua confusão. Não pode lhe recriminar de nada, pois ele manchou o sacramento do sacerdócio. Cada vez que dava a comunhão cometia um sacrilégio. Não merece indulgência, nem compaixão. Logo, não se separa do cálice que utilizava na missa, talvez seu último vínculo com um passado que deveria ter sido de outro modo. Ordenou-se padre para amar a todos os homens, mas agora que é um fugitivo sente que só conheceu um afeto verdadeiro: o que experimenta por sua filha, mas não é um vínculo limpo, bonito, mas uma atadura semelhante à que suporta um animal atado a uma árvore. Sonha com fugir ao outro estado, mas ao mesmo tempo deseja expiar seus pecados, redimir-se. Sua salvação só pode brotar da imitação de Cristo, que morreu por uma humanidade mesquinha e corrupta. O preço da sua redenção consistirá em amor o homem que vai lhe dedurar, um pobre mestiço que só conserva os incisivos e que protesta veementemente quando duvida de sua boa votante.

Ao lombo de uma mula que evoca inequivocamente a humilde montaria de Jesus para entrar em Jerusalém, o “padre uísque” deplora sua ridícula jactância: “Cristo também havia morrido por aquele homem. Como pretendia ele com seu orgulho, luxúria e covardia ser mais digno daquela morte que aquele mestiço? Aquele homem tentava vendê-lo por um dinheiro que necessitava e ele havia traído a Deus por uma luxúria que nem sequer era verdadeira”. No fim das contas, Deus também era aquele mestiço, pois todos os homens haviam sido criados à sua imagem e semelhança. Quando mais tarde o confundem com um bêbado e o prendem em companhia de ladrões e assassinos, experimenta “um afeto enorme e absurdo” por seus companheiros de infortúnio, que lhe faz captar o sentido mais profundo da frase “Assim amou Deus o mundo...”.

O “padre uísque” tem a oportunidade de fugir, mas decide desperdiçá-la por atender ao bandido estadunidense, ferido de morte e com desejos de limpar sua alma confessando seus pecados. Tem medo, mas aprendeu a amor os outros e a si próprio. Descobriu que a beleza do homem persiste no pecado e que só o puritanismo resiste ao auxílio da graça, opondo sua intransigência à misericórdia e ternura de Deus. Já não questiona Deus por seu silêncio, pois compreendeu que o silêncio e o desamparo são sinais do amor divino. Cristo também se sentiu desamparado na cruz. Ao recordar as confissões dos homens que se acusavam de amores ilícitos, lamenta não poder voltar atrás para dizer “O amor não é mau, mas é preciso ser feliz e visto. É mau quando oculto e infeliz… pode ser o infortúnio maior de todos exceto o de perder Deus. Não necessitas penitência, filho meu, tens sofrido o bastante”.

Quando no fim em mãos do tenente, adverte que é um homem desgraçado, alimentado pela febre de uma ideia que o consome sem trégua. Parece um santo que só vive para servir a Deus, mas sabe que não busca a glória, mas o poder. O poder para mudar o mundo e transformá-lo num lugar justo. O tenente o escuta sem ódio. Não lhe parece uma criatura ruim, como outros padres, mas um bom homem que, desgraçadamente deve morrer para erradicar uma ilusão prejudicial. É o último fragmento de uma raiz que resistiu longo tempo para ser extirpada. Deveria sentir-se feliz, aliviado, mas quando o tenente cai no sono, sente que se perdeu num determinado corredor sem nenhuma porta e que nunca sairá daí.

Greene nos proporciona uma esclarecedora definição do ser humano em O poder e a glória. O homem é um animal “tolhido” que “só pode pensar”. E o pensamento mata a esperança. A fé nunca poderá justificar-se racionalmente, pois constitui um escândalo, uma insensatez. A santidade só é uma paixão encarnada, uma bonita forma de loucura. Greene não foi um santo. Sua vida esteve cheia de contradições e feitos pouco edificantes. 

Espionou e delatou seus companheiros de escola por encargo dos professores, algo que o atormentou por toda a vida; enganou todas as suas companheiras, muitas vezes com prostitutas; simpatizou com o socialismo e a União Soviética sem que isso o dissuadisse de trabalhar para o MI6 até os últimos dias; se converteu ao catolicismo sem que preocupar que obras como O poder e a glória fossem incluídas no Índice dos livros proibidos, vigente até que Paulo VI o suprimisse em 1966; insultou contra o luxo e o desperdício sem deixar de frequentar festas da alta sociedade e desfrutar dos hotéis mais exclusivos; condenou o franquismo ao mesmo tempo que percorria Espanha com um padre identificado com o regime. Pode-se dizer que foi um grande pecador, com “uma indomável paixão pelos sonhos”, de acordo com suas próprias palavras. Talvez por isso nos deixou como legado um romance como O poder e a glória, com a força suficiente para obrigarmos a pensar em Deus numa época que já encontra motivos para acreditar em sua existência e que, sem dúvidas, não renunciou à esperança.


* Este texto é uma tradução de Graham Greene, pasión por los sueños, publicado inicialmente aqui no El cultural.

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