Yorick, embaixador da morte

Por Rafael Ruiz Pleguezuelos

cena de Hamlet, adaptação cinematográfica da célebre peça de Shakespeare por Grigori Kozintsev 

Não nada que eu goste mais na literatura que sua capacidade em produzir mitos. E de todos os mais conhecidos (os moinhos de Dom Quixote e a loucura, Moby Dick e a ambição do homem, os círculos do inferno de Dante e o castigo justo por nossas vidas), nenhum me seduz mais que a caveira de Yorick, uma imagem capaz de resumir toda uma história da literatura.

Quando uma obra é tão popular como Hamlet, no momento em que o público se senta no teatro não decide ver uma representação, mas uma atualização do mito. O espectador deseja, de uma maneira consciente ou inconsciente, que esse novo avatar do enredo responda à altura pela imagem idealizada que tem do texto. Como consequência, cada nova montagem da obra luta – desde há séculos, não esqueçamos – por se defender a si própria como projeto e ser capaz de estabelecer um diálogo satisfatório com a memória de cada espectador. A explicação sensível do fenômeno é que contemplar um clássico no palco não se reduz ao processo de reconhecer mas ao de comparar.

No mundo anglo-saxão, Hamlet despertou um culto tão profundo e perene que inaugurou um aspecto único do teatro: o das relíquias históricas relacionadas com sua representação. A imagem de um ator sobre o cenário estendendo o braço e contemplando uma caveira se tornou um ícone tão universal que não se constitui apenas como um símbolo de toda obra de Shakespeare, mas da magia do teatro como um todo, tal como as máscaras do teatro grego. Minha fascinação por Hamlet se baseia fundamentalmente na capacidade da peça em ser uma espécie de representação sobre a morte, dele e nossa. Shakespeare nos ensinou a enorme força que guardam os símbolos: na obra, Hamlet terá que se enfrentar à morte cara a cara e isso é precisamente o que faz quando levanta o crânio e reconhece nele os restos do bobo Yorick. O valor da cena é tão importante que o símbolo funcionada na verdade como uma antecipação do futuro: nas órbitas vazias da caveira está já inscrita a morte do próprio Hamlet.

A magia e contradição do teatro é que é um sucesso passageiro, e como tal nada do que vemos em cena tem porque se repetir amanhã, ao menos de uma forma exata. Lutando contra essa tristeza do fugaz que atores e espectadores sentem, as relíquias teatrais atuam como objetos que fixam nossa memória dessas representações, e constituem uma espécie de cristalização do instantâneo. Como um primeiro exemplo do fenômeno se encontra documentado a passagem de uma espada utilizada para representar Ricardo III que percorreria à história dos atores ingleses: de Kean a Irving, de Irving a Terry, de Terry a Gielgud, e finalmente de Gielgud a Laurence Olivier. Já se sabe que o conceito de linhagem entre as distintas gerações de atores sempre esteve muito presente no mundo do teatro, e relacionada à honra que corresponde a quem é designado para interpretar Hamlet a questão alcança proporções míticas.

Existem  muitos outros exemplos de relíquias teatrais que se passam de geração para geração, mas a mais apreciada no mundo anglo-saxão é, certamente, a caveira de Yorick. Uma das mais curiosas é a que se expõe na biblioteca da Universidade da Pensilvânia, que mostra em sua superfície a assinatura de todos os atores estadunidenses do século XIX que representaram Hamlet para a prestigiada companhia Walnut Street Theatre. Um total de nove assinaturas decoram o crânio e uma delas pertence a Junius Brutus Booth (estarão de acordo comigo que se alguém se chama assim está pouco mais que predestinado a ser ator), responsável por uma das anedotas mais interessantes sobre a caveira de Yorick. 

Encontrei duas versões diferentes da história e igualmente atraentes, porque se supõe que ambas são falsas. Na primeira, Booth teria conhecido na prisão um ladrão de cavalos chamado Fontaine. Em suas conversas de cela este havia prometido ao célebre ator que, depois de morto, o presentearia com sua caveira para que no futuro pudesse representar com ela a tragédia de Shakespeare. Passaram-se os anos e Booth pareceu esquecer-se completamente daquela promessa de seu colega de cela, mas não o ladrão. Um belo dia, quando Booth tomava o café da manhã num hotel em Louisville, um serviçal apareceu com uma cesta coberta por um pano branco. O ator supôs no mesmo instante que se trataria de flores ou frutas oferecidas por algum admirador, assim aceitou de imediato a oferta do rapaz. Quando levantou o pano, encontrou, para sua surpresa, a cabeça do ladrão de cavalos.

A segunda versão da história se encontra escrita no livro de memórias da filha de Junius Brutus Booth, chamada Asia Booth Clarke. As variações entre uma e outra história deixam entrever como a memória pode docilizar-se quando passa pelo crivo do amor de uma filha, e além disso nos lembram que as biografias se escrevem para alcançar dois efeitos: reparar a memória ou atentar contra ela. Na versão de Asis, Booth não conhece o ladrão de cavalos quando os dois estão na prisão, mas numa situação muito mais honrosa para o ator. Asia conta que algum amigo de seu pai lhe falou dos problemas que este ladrão chamado Fontaine teria para encontrar um advogado que o defendesse devidamente. Booth, descrito por sua filha, como alguém de um espírito tremendamente generoso, lhe enviou um advogado que ele próprio custearia. Sua boa ação não surtiu resultado, pois o advogado não pôde fazer nada para evitar que o delinquente fosse executado. Mas, para mostrar seu agradecimento eterno (nunca melhor dito) o ladrão de cavalos deixou escrito em seu testamento (ou ao menos foi algo que a filha de Junius escreveu): “Minha cabeça deverá ser doada, depois da execução, ao ator Booth, com a condição de que a use na encenação de Hamlet, e pense quando a tenha em mãos a gratidão que sua amabilidade despertou em mim”.

Não é fácil provar se Junius Brutus Booth chegou a utilizar a caveira de Fontaine, mas se se encontra documentação clara de que o autor deixou em herança ao seu filho uma caveira de verdade que havia sido utilizada em algumas de suas representações de Hamlet, bem que poderia se tratar da legada pelo ladrão. A lenda dos Booth e Hamlet, longe de acabar aí, se espalhou com a chegada de seu filho ao teatro: Edwin Booth, que assim se chamava porque nascido fora do casamento e, portanto, meio irmão de Asia, parecia predestinado a encarnar Hamlet, pois sua vida privada não cessava de oferecer ressonâncias da tragédia shakespeariana. O público encontrava na vida aquilo que coincidia com o papel de Edwin nos palcos até ao ponto de circular uma sorte de superstições no boca-boca das pessoas em torno de sua figura. E tudo se fez tão popular que chegou a um ponto em que, para alguns indivíduos, Edwin Booth e Hamlet eram a mesma pessoa. As provas de tamanha união biográfica eram: a devoção por seu pai, que morreu muito jovem; a morte prematura de sua primeira mulher, uma jovem belíssima; o escândalo de que seu irmão John Wilkes assassinara ninguém mais ninguém menos que o presidente Abraham Lincoln; e a loucura e morte repentina de sua segunda mulher. Para os caçadores de coincidências e paradoxos da história há um detalhe a ser acrescentado: antes de seu irmão assassinar Lincoln, os dois haviam aparecido juntos em cena numa montagem de... Julio César, a eterna obra de Shakespeare sobre o magnicídio.

Desde esses dias, muitos foram os fanáticos de Hamlet que ofereceram seu crânio para ter a honra póstuma de ser Yorick em cena: o próprio Charles Dickens conta em 1889 na história de um tal John Reed, empregado do prestigiado Walnut Street, que depois de muitos anos de trabalho no teatro, deixou escrito em seu testamento que sua cabeça fosse separada do corpo e limpa para posteriormente ser usada pela companhia.

O século XX também tem histórias de relíquias associadas com Hamlet: em 1980, um pianista (e sobrevivente do Holocausto) chamado André Tchaikovsky assistiu a uma representação da tragédia a cargo da Royal Shakespeare Company. A impressão da dita cena deve ter lhe acompanhado daí até o fim de seus dias, pois em seu leito de morte, decidiu doar seu crânio para a companhia. O que Tchaikovsky não contava é que nenhum membro da Royal Shakespeare Company compartilhava do desejo do pianista em usar uma caveira de verdade em suas montagens, de maneira que o crânio ficou nos depósitos durante anos sem que ninguém mostrasse interesse em levá-la em cena. O desejo póstumo do pianista esteve a ponto de cumprir-se em 1989, mas a companhia não entrou em acordo sobre as consequências éticas da situação, de modo que caveira voltou para o lugar de sempre. Para compensar sua decisão, tentou-se criar-se uma réplica feita com as medidas do crânio do pianista e esta foi usada em cena. A justiça em memória de Tchaikovsky chegaria bem tarde: em 2008, David Tennant (um rosto popular na Grã-Bretanha por ter feito parte do elenco do seriado Doctor Who) se atreveu a por fim utilizar o crânio em cena numa nova produção de Hamlet pela Royal Shakespeare Company, e naqueles dias circulou o rumor de que sentiu tamanha emoção no ato que em numa ocasião a caveira caiu de suas mãos e marcou o cenário.

Embora já no século XVIII alguns críticos mostrassem seu descontentamento pelo excessivo culto que público e atores davam às peças utilizadas nas representações de Hamlet e tentavam avisar da falta de ética que podia existir no uso de caveiras de verdade, sua advertência caía sempre em descrédito pois sua utilização por parte dos atores era quase universal. Até o século XX, os atores que entravam na obra de Shakespeare não somente não tinham nenhum problema em utilizar uma caveira de verdade, mas, de maneira geral, era assim que preferiam. Foi a sociedade contemporânea que nos separou da ideia de morte, que agora se associa normalmente ao mau gosto, augúrio ou ao algo mórbido.  

Del Close, um ator especializado na improvisação e comédia popular, doou seu crânio ao Teatro Goodman de Chicago com o mesmo desejo de Tchaikovsky. Sua obsessão por Hamlet vinha desde quando representou o papel de Polônio e ganhou com ele o prestigiado prêmio Joseph Jefferson. Sua cabeça foi entregue ao teatro em 1º de julho de 1999, e a companhia disse durante muito tempo que a utilizava em suas apresentações. Mas um artigo do Chicago Tribune, de julho de 2006, desmentiu a história do crânio de Del Close e confirmou que a cabeça do ator foi incinerada porque a companhia não conseguiu encontrar um médico que quisesse limpá-la e deixá-la apta para cena.

Ainda sendo a tragédia do autor inglês mais carregada de humor e romantismo, há tantos embaixadores da morte em Hamlet que o conjunto da representação tem algo de juízo final. O primeiro aviso da morte com o qual topamos é essa sombra do pai que serpenteia pelas muralhas de Elsinor, informando, a quem quer lhe ouvir, do crime que o converteu em fantasma. Shakespeare nos obriga que olhemos a morte nos olhos e, mais ainda, que estabeleçamos uma relação com os mortos. Sem que nos demos conta, o autor inglês desliza em nossa mente a ideia de que Yorick pode ter sido um bufão no passado, mas no presente é um emissário do inevitável.

Também é algo comum aos grandes mitos da literatura ou do cinema que permaneçam no imaginário coletivo entre equívocos, generalizações e meias compreensões. Shakespeare não é imune a este mal: o primeiro erro habitual do mito é que Hamlet não sustém a caveira quando pronuncia o famoso “Ser ou não ser”, que é por outra parte a frase dramática mais difundida da história. Faz antes, na primeira cena, do quinto ato, quando diz: “Pobre Yorick! Conheci-o, Horácio; um sujeito de chistes inesgotáveis e de uma fantasia soberba. Carregou-me muitas vezes às costas. E agora, como me atemoriza a imaginação! Sinto engulhos. Era aqui que se encontravam os lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Onde estão agora os chistes, as cabriolas, as canções, os rasgos em gargalhadas? Não sobrou uma ao menos, para rir de tua própria careta? Tudo descarnado!” O célebre monólogo da dúvida chega a nós na primeira cena do terceiro ato. O que ocorre é que os momentos mais sugestivos da peça ficaram fundidos para o mundo por magia da idolatria e o esquecimento da paixão. Nunca se uniram no texto ou na cena mas na imaginação dos espectadores que desfrutaram a obra temporada a temporada, século a século.

Parece-me estimulante a ideia de que a tradição criada por Hamlet tenha gerado nos amantes do teatro um laço externo paralelo ao que se cria na obra, como se a magia de Shakespeare houvesse se estendido à realidade. No texto, Hamlet quer saber a quem pertenceu os restos mortais que o coveiro retira da terra. Quando um espectador se senta na plateia, o efeito Yorick começa: o coveiro afirma que a caveira pertence a Yorick, o bobo da corte, mas o espectador pode saber, ou leu, ou o contaram, que pertenceu a Tchaikovsky, um pianista que um belo dia decidiu que que queria estar aí, sobre a mão de Hamlet. Ou a um ladrão de cavalos chamado Fontaine. Talvez a caveira seja de Del Close, esse ator de comédias mediano. E então, uns e outros, obedecem a Shakespeare. Dedicam um instante de suas vidas a pensar na morte.

* Este texto é a tradução livre de “Yorick, embajador de la muerte”, publicado aqui em Jot Down.


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