Uma farmácia literária que pode curar quase tudo


A literatura como remédio, como uma cura aos males da vida. Os livros como cura para as feridas e as bibliotecas pessoais como tratamento sem efeitos colaterais. Isso se não perguntam ao fidalgo criado por Miguel de Cervantes que talvez, em seu são juízo, dissesse o contrário. Os livros como remédio para tudo. Ou para quase tudo. De flatulência à desilusão amorosa. Contra o medo da morte, Gabriel García Márquez e Cem anos de solidão. Contra o medo às situações difíceis, perigosas, Harper Lee e sua personagem Atticus Finch, de O sol é para todos. Contra o medo do compromisso, o Prêmio Nobel de Literatura português José Saramago e seu Ensaio sobre a cegueira. E por aí vai, uma recomendação após outra com os motivos e os conselhos a modo de instruções de uso. Instruções que, aliás, são muito simples: sente e leia. Embora neste prospecto de quase quatrocentas páginas não advirtam os efeitos colaterais nem se faz necessário consultar um especialista.

Apresentado pela Editora Verus, esta é a Farmácia literária construída por Ella Berthoud e Susan Elderkin. No estoque, mais de quatrocentos títulos, e muitas, muitas pílulas soltas: as indicações indiretas e as listinhas que satisfazer a qualquer um viciado nelas. Um livro que por sua vez é um guia literário contra o peso do corpo e do espírito. Remédios para essa “noite escura da alma”, sobre a qual muitos escritores sabem algo, ainda que muitos deles não apareça entre os autores escolhidos. Não há como alojar todos os livros. Aliás isso pode ser um sinal de consumismo, outro mal que o receituário apresenta. O livro é, na verdade, um fio para puxar e encontrar sempre com um romance adequado no momento adequado. (Embora a cada romance quase sempre se chegue de uma forma pouco clara e casual). E fornecer estratégias de se criar novos fármacos. Por que não pensar num roteiro para farmácia de manipulação? 

Farmácia literária trata-se de um compêndio no qual as doenças estão ordenadas em ordem alfabética e os males encontram consolo em forma de leituras como pílulas receitadas para cada ocasião. Um manual para leitores feridos que chega a tratar temas tão necessários, como o já citado acima, da compra compulsiva de livros, que é um tema sobre o qual pouco se fala porque os leitores compulsivos gostam tanto do aspecto e do contato com os livros que desejam, de todas as maneiras, possuí-los. E assim vão acumulando leituras pendentes e as autoras logo recomendam algumas soluções como montar uma prateleira exclusiva próximo da cama onde seja possível organizar os livros por ordem de chegada. E se não os lê num prazo de alguns meses é hora de praticar o desapego: presenteá-los ou buscar um novo lugar num sebo.

Consumismo e depressão. Este é um mal irremediável do século. Para o primeiro deles até existe conselhos como “Para ler muito, comprar pouco”. Mas, e quando os problemas se misturam com outros? Tipo: aliviar as dores depressivas comprando muito. Talvez seja o caso de combinar leituras. Aqui o leitor poderá encontrar com F. Scott Fitzgerald e Suave é a noite como obra aconselhada contra o consumismo. É que de gastos algo tinha de saber o escritor de O grande Gatsby que, diferentemente de sua personagem milionária, se via obrigado a recorrer aos seus editores constantemente em busca de recursos e provisões para manter o ritmo de vida ao qual havia se acostumado. Para compor a combinação vá direto à escritora estadunidense Sylvia Plath, quem, aliás, terá falado de uma possibilidade de saída desse mal conjugado através do seu alter-ego Esther em A redoma de vidro. Mas, cuidado: se não se fala sobre os efeitos colaterais, avisamos, desde já, que este fármaco tem contraindicações a pacientes que se veem demais na doença alheia. Nesses casos, o melhor é ir a Milan Kundera, A insustentável leveza do ser.

Um manual de medicina, mas diferente dos demais. É o que o leitor percebe quando, entre suas páginas, encontra referências a Ovídio e suas obras. Além dessas, estão aí O asno de ouro, de Lucio Apuleio, fármaco contra o exagero na autoconfiança. Isso soa estranho num tempo quando quase ninguém mais lê os clássicos. Atualmente, grande parte dos leitores só recorre aos livros de autoajuda que tratam de inventar soluções milagrosas com receitas do tipo faça-que-dá-certo. Basta ler as listas dos mais vendidos. Este livro diz a essa gente obcecada pela auto-ajuda que, primeiro, não solução definitiva tal como esses livros que muito vendem oferecem e, segundo, sobre tudo já foi escrito nas grandes obras da literatura universal. Isto é, este livro volta a reconciliar o leitor com a leitura, esta que tem efeito de bálsamo ou não segundo o título e segundo o tempo em que se lê. E, na verdade, é mesmo o desassossego o que nos falta. A biblioterapia não pretende substituir os médicos, nem dar às costas para a medicina, quer voltar a reconciliar o indivíduo com a literatura.

Há uma ficha inclusive para superar a nostalgia. As autoras recomendam o romance Emigrantes, de Shaun Tan. E as listas? Sempre é preciso fazer listas. Elas servem para tudo e, conforme o leitor avança as páginas, as autoras dizem os melhores títulos para diversas circunstâncias, desde apaixonar seu companheiro pela literatura, passando pelos dez melhores romances para se lê numa cama de hospital, até os dez melhores romances para curar a ansiedade de viajar.

Peter Pan, de J. M. Barrie, como remédio para a perda de um membro; crocodilos à parte. E a falta de um cachorro que sirva de babá, que se encarregue dos labores da casa ou atenda aos enfermos com gripe, O assassinato de Roger Ackroyd, de Agatha Christie, até o desaparecimento dos sintomas. Ejaculação precoce (essa boa!), Pamela, de Samuel Richardson. E curado o corpo restam os assuntos do espírito, tão grandes quanto a ficha que os trata: “sentir-se como um idiota”, um à parte, onde não cabe, não há outra recomendação que o escritor russo Dostoiévski e não perguntem ao príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin. 

Mas este é um consultório que se modela às culturas por onde passa. Farmácia literária está disponível em mais de vinte países e em cada um deles as autoras fizeram acréscimos para contemplar algumas doenças e obras locais. No caso do Brasil, foram inseridos títulos de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Milton Hatoum. É fundamental consultar o livro para saber o que eles nos curam. E para não perder o costume das listas, apesar deste texto já funcionar como uma, uma lista com dez recomendações:

1. Para superar um amor não-correspondido: Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe
2. Para remediar o absurdo da existência: A vida, modo de usar, de Georges Perec
3. Para não ficar sem palavras: Lolita, de Vladimir Nabokov
4. Para moderar o otimismo: Cândido, de Voltaire
5. Sofrendo com o desemprego: Crônica do pássaro da corda, de Haruki Murakami
6. Contra o cansaço: O velho e o mar, de Ernest Hemingway
7. Para crise de identidade: A metamorfose, de Franz Kafka
8. Para lutar contra a insônia: O livro do desasssossego, de Fernando Pessoa
9. Ante a perda de memória: O inominável, de Samuel Beckett
10. Para aliviar o mau humor: A ilha do Dr. Moreau. de H. G. Wells  

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