O marechal de costas, de José Luiz Passos

Por Pedro Fernandes



“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. A frase de Karl Marx, assim deslocada da obra em que foi gestada nunca serviu tão bem ao momento pelo qual passamos – dentro e fora do Brasil. Algumas forças que, displicentemente, pensávamos sepultadas nos anais da história, voltam à ribalta e ameaçam cada vez mais assustadoramente voltar aos tempos de razão cega e sectarista responsável pelos momentos mais dolorosos de nossa curta estadia no mundo como civilização. E essa é a frase que bem poderíamos apresentar como explicação metodológica sobre a criação de O marechal de costas, de José Luiz Passos.

Agora, antes de justificar a razão, é preciso fazer duas perguntas: uma é, qual o limite da realidade histórica metida num romance e, outra, desmembrada da primeira, é, até que ponto o romancista pode controlar as forças de seu tempo na influência de uma composição romanesca. Provavelmente, a resposta que obtivermos das duas questões justificará a afirmativa sobre a relação entre a sentença deslocada de Marx e o romance de Luiz Passos.

A segunda pergunta nasce de uma suspeita: parecerá ao leitor que o escritor trabalhava na feitura de um romance de verve historiográfica ou meta-historiográfica, exercício de criação com muitas possibilidades no âmbito da literatura brasileira, quando as insistentes revoltas populares se repetiam com as manobras impostas ora por uma mídia partidarista ora por uma grande quantidade de pessoas, massa de manobra nas redes sociais, culminaram no golpe de 2016. É preciso dizer que talvez não haja relação alguma entre as ruas e o cenário político desses últimos anos, por uma razão muito simples: o golpe de 2016 faz parte de outra narrativa, a qual só temos acesso ao ventilado pela imprensa, e até onde podemos ir, acompanhados da opinião dos dissidentes, a dissolução do poder da presidenta Dilma Rousseff foi fruto de uma ruptura interna de outras forças, as que verdadeiramente regiam o país, e produto de um revanchismo quase infantil, aliás, só não designado dessa maneira porque não praticado por uma criança.

Esse burburinho, a história acontecendo, logo serviu ao romancista de material para subsidiar a construção de outro fio que envolvesse a narrativa principal de O marechal de costas – título, aliás, que denuncia a suspeita – e pudesse construir, como se num jogo de encaixe, uma segunda narrativa, a que reconta a história presente. Se assim aconteceu, então já sabemos que o acaso não é responsável apenas por coisas ruins. Porque ao traço sério, intrincado e por vezes enciclopédico da história de Floriano Peixoto e como este também conseguiu tomar o poder depois de se ver eleito diretamente o vice mais popular que o Marechal Deodoro (o que não se mostra, evidentemente, no caso contemporâneo) ganha outra dimensão com a narrativa da família do Sr. Ramil, o filho Ramil Jr. e uma cozinheira vinda de Alagoas e tida como descendente do marechal. Essas duas linhas narrativas não se constroem paralelamente; são mantidas por duas vozes narrativas distintas – uma que se coloca fora dos acontecimentos e logo mais utilizada na primeira e outra mais centrada no eu e portanto mais utilizada na segunda história, o que não esclarece de um todo essa construção porque a variabilidade dos pontos de vistas é muita. Isto é as narrativas são interseccionadas.

Como é comum às narrativas de corte historiográfico, o que o leitor descobre que a vida de Floriano Peixoto não tem nada de levante sobre a moral, a perspicácia e o heroísmo de um sujeito sem grandes perspectivas saído do interior do Nordeste para servir às forças do Império e obcecado pelas paixões do corpo. Pelo contrário, o narrador agarra-se ao anedotário sobre sua figura e destitui copiosamente a ideia do vulto impecável responsável pela consolidação da República no país – essa, aliás, descrita sem grandes pudores como produto de uma dessas grandes tramas envolvendo figurões que muito longe das vistas do povo costuram seus conluios em nome do poder. Restitui um traço que nos define enquanto nação: o Brasil é produto histórico do jeitinho, esse que, se um por um lado salva-nos do precipício por outro pode criar um precedente para que se institua o que não poderia ser instituído sob pena de corroer as próprias armaduras do poder, da ordem e se tornar em armadilha capaz de fazer ruir toda engrenagem e obrigar-nos a refazer tudo novamente pelo começo.



Se o nascimento da República é visto pelos olhos distantes e logo melhor preparados para enxergar as entranhas da história, conflitando o oficial com o oficioso, a turbulência enfrentada pela democracia ainda incipiente no Brasil e fruto essa de outra sorte de interesses é vista pelo olhar do de fora, do que interpreta os acontecimentos no calor da hora e não têm uma acurada certeza sobre os rumos da história. Isso significa dizer que o episódio do passado pode servir ao leitor de iluminação sobre o presente propiciado por uma leitura comparada entre as duas situações históricas já que às personagens tudo resultam só em coincidências – assim como coincidem (ou pelo menos assim acredita) os traços entre a vida de Floriano Peixoto e a figura que aprendeu a admirar na escola de cadetes da Praia Vermelha, Napoleão Bonaparte.

Ao dizer isto, nota-se que O marechal de costas lida com outra constatação: a história como descontinuidade e não como organização linear e acabada. Assim, convivem lado a lado os feitos do marechal na Guerra do Paraguai e os de Napoleão Bonaparte na expansão do império, o discurso de D. Pedro II na retomada de Uruguaiana e o discurso da presidenta Dilma na mesma cidade nas enchentes em 2015, a carta em que Floriano Peixoto revela alta fidelidade ao Império enquanto sabia da trama pela instalação da República e a de Michel Temer ressentindo com o tratamento recebido por Dilma Rousseff, as opiniões sobre o novo regime e a dos milhares de internautas que se digladiam contra o tratamento de uma arara com seus filhotes observado através de câmeras escondidas e transmitido nas redes sociais. E, no que se refere ao poder político, palavras quase sempre amálgamas da história: indiferença, audácia, perspicácia, traição, interesses pessoais. Floriano Peixoto era o de mais alta condecoração no Império, em 1889 havia recebido de D. Pedro II o título de Grande Dignitário da Ordem da Rosa – “Pedro II e a princesa Isabel confiavam cegamente em Floriano”, diz o narrador como se dissesse “Dilma Rousseff confiava cegamente em Temer”, numa revelação de que mesmo estando parte de uma estreita relação de poder correm mais enigmas do que certezas entre os envolvidos.

À pergunta até que ponto o romancista pode controlar as forças de seu tempo na influência de uma composição romanesca ficam algumas compreensões: é impossível negar a história, aquela que corre fora dos livros e mesmo as já tidas como oficializadas quando se constrói histórias e cabe ao romancista não recriar no âmbito da ficção o acontecido ou o acontecendo e sim reinstrumentalizá-lo de outras possibilidades capazes de responder não pela sua verdade mas pela sua possibilidade. Se cai na armadilha da repetição, o escritor estará compondo outro texto que não o romanesco – uma novela talvez? – e ao sair de O marechal de costas, uma coisa é certa, todos saem com outra perspectiva sobre a história, essa que desgraçadamente aprendemos a ignorar ou não conhecer e a ignorância e o desconhecimento de nossa própria história é terreno fértil para os oportunismos, as tragédias e as farsas. O romance de José Luiz Passos é, assim, um apelo à consciência, a verdadeira revolução que nos falta para romper com esses ciclos de conveniências que só nos arrasta para o lugar mais triste da história: o do retrocesso com a permanência dos interesses escusos e o apagamento das diversidades e criatividades, gesto pelo qual sempre somos lembrados e do qual insistimos querer nos afastar.

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