Saint-Exupéry muito além de O pequeno príncipe


Se há um escritor sobre o qual acreditamos saber tudo ao seu respeito, ainda que na verdade não saibamos nada, esse escritor é Antoine de Saint-Exupéry. Todos já leram ou ouviram falar sobre O pequeno príncipe. Mas sabemos muito pouco do homem que foi pioneiro da aviação e um dia sofreu um acidente no deserto do qual saiu vivo pela pura intuição de continuar a pé, sem água e comida, na mesma rota que havia seguido nos Andes um amigo seu, também piloto que teve de fazer uma aterrissagem de emergência nos cumes gelados. Quando era muito jovem, uma vidente lhe fez esta premonição: “Se casará com uma mulher estrangeira e chegará a ser um escritor célebre. Mas evite o mar, e a partir dos quarenta anos, desconfie dos aviões nos quais voe”.

A profecia, por acaso ou não, se cumpriu ao pé da letra. Saint-Exupéry se tornou uma celebridade que ganhava fortunas astronômicas por seus livros e suas crônicas para o jornal. E quando tinha 44 anos, no dia 31 de julho de 1944, desapareceu em alto mar, próximo de Marselha, enquanto realizava um voo de reconhecimento com as Forças Aéreas da França Livre. Antes de partir, havia deixado algumas anotações: “Se sou hoje abatido não lamentarei. O futuro dos cupins me espanta e odeio suas virtudes de robôs. Eu estava preparado para ser jardineiro”.

Há quem diga que Saint-Exupéry se suicidou jogando seu avião contra o mar, mas esta hipótese é muito improvável. O piloto tinha um altíssimo conceito de honra e de responsabilidade (de fato, eram os fundamentos de sua visão humanística da vida). É certo que naqueles dias não via nenhum sentido na vida num mundo cada vez mais desumanizado pela guerra e pela propaganda. Mas é muito difícil acreditar que Saint-Exupéry se suicidasse.

Tampouco são críveis as hipóteses de que tenha sido derrubado por um caça alemão. Dois aviadores alemães asseguraram muitos anos depois, e em função de alguns dados divulgados, que abateram em ação de guerra o avião de Saint-Exupéry. Não é comprovável. Muito maior crédito têm as descobertas sucessivas, em 1998 e 2000, no mar ao sul de Marselha e regiões próximas, de uma pulseira com seu nome e do sua companheira e restos do avião. Mas não do abate. 

Nesse assunto, o mais provável é que sofreu um acidente ou que lhe extraviou a mangueira de oxigênio. Ou ainda que tenha faltado combustível por haver se desviado da sua rota para ir contemplar do ar o castelo de Saint-Maurice, onde havia vivido uma infância de conto de fadas. De toda maneira, morreu fazendo o que amava.

O fato é que não regressou à base e seu corpo nunca foi encontrado. “Parecerá que morri e não será verdade”, dizia o pequeno príncipe ao fim de sua história. E certamente Saint-Exupéry falava de si mesmo. O escritor às vezes roçava perigosamente na sensibilidade – colocando sua criação literária em risco – mas saía sempre firme de todas as características do texto banal porque sua espiritualidade, uma espécie de espiritualidade panteísta baseada na fé cega no homem, era tão genuína como sua paixão por aviões ou seu amor pelas estrelas.

Quando criança seus amigos o chamavam Tonio; seus amigos de voo, Saint-Ex. “Não estou muito seguro de ter vivido depois da infância”, escreveu numa carta para sua mãe quando já havia atravessado o Saara, os Andes e a Patagônia como correio aéreo para a companhia Aeropostal. Em 1928 passou um ano e meio como chefe de destacamento em Cabo Juby, uma remota região do Saara sob proteção espanhola. Ali, Saint-Exupéry notou quem “um silêncio não se parece a nenhum outro silêncio” e que cada estrela “é a estrela dos Reis Magos”. Algumas das páginas mais belas saíram daquela experiência.

Saint-Exupéry e Consuelo em Vila Mirador, 1931.

Em 1931, Saint-Ex se casou com Consuelo Suncín, que era salvadorenha e mais tarde serviu-lhe de inspiração para a personagem da rosa de O pequeno príncipe. Consuelo era ególatra, sensual e caprichosa. As traições de Consuelo foram tantas como as do próprio Saint-Ex, que manteve relações com outras muitas mulheres e nunca deixou as coisas fáceis para sua companheira. Era um homem difícil e vagabundo que só se sentia salvo disso quando estava de piloto num avião e se aproximava das estrelas.

Saint-Exupéry começou a colaborar com a imprensa por causa dos graves problemas econômicos que sofreu quando perdeu seu emprego na Aeropostal. No total, entre 1932 e 1938, escreveu meia centena de crônicas nas quais contava suas experiências como pioneiro da aviação comercial. Também exerceu o trabalho de jornalista na Rússia de Stálin e durante a Guerra Civil em Espanha. Nesse período, por duas vezes esteve na terra de Cervantes: em agosto de 1936, em Barcelona e depois, em abril do ano seguinte, em Madri. 

Em vários textos fala com combatentes e está imerso nas tensas situações daquele país interessado em descrever os acontecimentos, revelar feitos e dados mas sempre movido por querer sondar os abismos da condição humana, num momento onde homens estão dispostos a matar e morrer. Nas suas observações, critica o tipo de jornalista apenas preso ao fato real ou interessado em só transmiti-lo porque na sua compreensão a imparcialidade é vã é também sua tarefa se posicionar, ser crítico e formar opiniões que estejam ao lado do homem. E é isto o que faz ao se propor a um relato minucioso e quase literário das impressões sobre os acontecimentos perto de si.  

Escreve duras críticas sobre os bombardeios de Franco contra Barcelona, os crimes de encomenda e o anarquismo; toma partido claramente e se interroga sobre as caudas dos comportamentos atrozes que jogam homens contra homens. Preocupava-lhe a política; num café em Barcelona chegou a ver homens serem detidos para o fuzilamento sob a acusação de “fascistas”. “Esta guerra não é uma guerra mas uma enfermidade”, escreveu numa crônica; “Numa guerra civil o inimigo é interior e se luta quase si mesmo”, escreveu noutra. Os textos saíram no France-Soir, três deles, de um total de 11. Na Espanha, Exupéry fora enviado especial desse jornal. 

Sua posição era, de um democrata e serviu-lhe contra si quando todos no seu país se voltaram contra suas posições. Foi quando se disse na França que não um condizente com os colaboracionistas de Vichy e, na verdade, Saint-Exupéry foi um dos que detectaram o caudilhismo do general De Gaulle e não foi partidário de um ajuste de contas entre franceses quando no fim da Segunda Guerra Mundial. É então quando se vê forçado a partir para o exílio, entre 1940 e 1943, em Nova York (e na Califórnia, onde foi hóspede do cineasta Jean Renoir), onde escreveu e publicou O pequeno príncipe.

Mas, o melhor título de Saint-Exupéry é o que nunca pode revisar e ficou num simples rascunho: Cidadela, livro com mais de mil páginas com suas reflexões e pensamentos. Mas pouca gente leu esta obra enquanto todo mundo conhece O pequeno príncipe, escrito no seu exílio nos Estados Unidos, no verão de 1942, antes de voltar à Europa para lutar com a França Livre, depois de ultrapassar a idade máxima de ser piloto, até aquele dia de julho de 1944 em que nunca mais regressou.



Filho de aristocratas em crise, o conde de Antoine de Saint-Exupéry nasceu em Lyon em 1900, numa família que seria composta por quatro irmãos. O pai morreu quando Tonio tinha só três anos, idade quando perdeu um dos irmãos. Viveu a infância e parte da adolescência como itinerante, entre castelos da família e colégios de grande reputação – marianos, jesuíta – nos quais foi estudante exemplar. Interessado por desenho, depois de seu bacharelado, estudou mais um ano num curso de Arquitetura na Escola de belas Artes.

Mas, além da pintura, da arquitetura e da literatura, Saint-Exupéry guardou a paixão pela aviação. Como aviador, abriu ou cobriu rotas para o correio e o transporte aéreo pela Europa, África e América Latina a serviço de empresas pioneiras no assunto; quis bater e bateu recordes de velocidade em várias viagens aéreas de longa distância. Não foi apenas o acidente no deserto da Líbia, em 1935, do qual sobreviveu. Em 1938, na Guatemala a queda do seu avião levou ao coma e a fraturas na cabeça e sem partes diversas do corpo.

Acrescenta-se a essa lista de famas e feitos, o gosto pelo xadrez e a fama de bom enxadrista, violinista, cantor, hábil com o baralho e, claro, o papel de sedutor. Seja dessas pequenas histórias, seja como escritor como aviador, tudo só serviu a uma extensa fama que só cresceu com o seu desaparecimento. Muito, muito além, por tudo isso e o que ainda se falta descobrir, do homem inocente e infantil com que andaram a pintar desde O pequeno príncipe.

Ligações a esta post:

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

A bíblia, Péter Nádas

Boletim Letras 360º #576

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

Boletim Letras 360º #574