Com tinta vermelha, de Mireille Abramovici


Por Pedro Fernandes




Nem todo título de uma obra nos propõe um enigma. E os que comumente fazem isso estão marcados por uma sentença poética. Com tinta vermelha não se encaixa nem na primeira e nem na segunda constatação. A princípio, pelo tema proposto, o leitor poderá suspeitar que os termos assim dispostos signifiquem a marca da dor. Mireille Abramovici volta a um tema muito caro para história da humanidade: os horrores do nazismo contra os judeus. Apesar de ser esta uma obsessão manipulada de forma diversa pela literatura de ficção ou pela história nunca deixará de ser algo dispensável para os leitores de qualquer geração porque o horror é sempre necessário de fazer parte do imaginário a fim de que sirva como alerta sobre os desrumos que um projeto de intolerância – nascido de pequenas atitudes, para lembrar da brincadeira de mau gosto experimentada por um russo aos judeus na narrativa de Doutor Jivago, de Boris Pasternak – ganhe a proporção de uma obsessão coletiva capaz de nos situar no limite mais absurdo do irracional.

O desaparecimento do Isaac Abramovici tem sido o motivo de uma vida de investigação para Mireille. Não se trata de alguém presa a um passado e já incapaz de viver o presente porque em tudo está a necessidade de descobrir sobre o paradeiro do pai. Trata-se, isso sim, de alguém que assumiu o compromisso individual de tornar coletiva a dor de uma injustiça – seja para aprender a conviver pessoalmente com o trauma seja para despertar o outro do conforto existencial de que as milhões de mortes contra diversa variedade humana foi só um mero acidente da história ou ainda a manipulação solitária de um facínora como Adolf Hitler. Mais: num ano em que a obra do ditador ganha o interesse de milhões ao redor do mundo é preciso que sempre se mantenha histórias como a de Mireille Abramovici para lembrar que os insultos de uma mente doente sempre pode encontrar terreno fértil para brotar com a mesma força que um dia brotou na Alemanha. Não é uma visão pessimista – como poderá parecer aos incrédulos de que o presente não possa repetir o passado – é a compreensão de que a história é circular e sempre pode ser repetida, de maneira até mais grave ainda.

Mireille Abramovici tateia entre os sinais deixados pelo ódio extremo e imagina reviver o passado dos pais – Isaac e Sylvia, ele de Piteşti, ela de Bucareste, os dois movidos pelos mesmos interesses – nos primeiros alvores da Segunda Guerra Mundial até quando, depois de vagarem por meia Europa em busca de paz, Isaac nunca mais voltará ao lar que sempre desejou com maior força e amor. A escritora se coloca numa posição muito distanciada dos acontecimentos, como alguém que examina a história e dela coleta apenas o que a história é possível lhe proporcionar; não é uma posição que favoreça o apagamento do subjetivo, como poderá pensar o leitor. Há, entre as revelações que pouco a pouco esse olhar perscrutador, busca reconstruir a inserção mais intimista da investigadora – reforçando que não há essa objetividade limpa e transparente como nos faz crer a história ou essa mídia que insiste em repetir que é imparcial sobre os acontecimentos que narra. O  ir e vir da investigadora nos coloca em contato ainda mais real e impactante com o conteúdo emocional que envolve essa busca e reafirma que as sequelas de um horror como são os gestados no interior dos regimes totalitários reverberam por toda história; isto é, estão muito além dos mortos nos guetos e campos de concentração. Por mais que o leitor já tenha tido contato com outras narrativas do gênero, não deixará de se impactar pela trajetória dos pais de Mireille.

Com tinta vermelha é um relato contundente. É também uma denúncia do que foi o nazismo, um acerto dos ponteiros da história sobre a crueldade contra os judeus: “Um Abramovici está sendo procurado, um Marcel ou Isaac, isso não parece ter importância para os Eichmann, os Richter, os Knöcken, os Röthke ou os Meir. O mundo imaginário que eles habitavam era um mundo no qual tudo o que fosse diferente era eliminado. Era preciso então que os judeus, os Marcel ou Isaac, os Slomon, as Ana ou Anca fosse culpados. Nesse delírio paranoico, inventam-se inimigos. Para concretizar esse ódio, vai-se provar que todos os judeus são ladrões, traficantes e covardes”. E o alerta sobre a gênese do mal: “Os nazistas e todos os antissemitas da terra desenvolvem um ódio pelo outro, e sobretudo por esse outro que com ele se parece. Esse sentimento inconfessável conduziu a essa demência criminosa. Foi desse medo incontrolável que milhares de homens, entre eles meu pai, foram vitimados”.

Da possibilidade de uma família feliz e realizada, às primeiras imposições antissemitas – a proibição de que os judeus tivessem empregadas, o toque de recolher para os judeus, o número regrado de visitas aos amigos e a aquisição de comida – aos horrores das perseguições, dos guetos, das violações, das mortes – nada escapa nesse dossiê construído pela francesa no extenso período em se dedica saber sobre o pai.

As cartas assinadas pelos pais, as fotografias, os filmes, anotações, reportagens e tudo que encontra nas diversas visitas que faz ao acervo pessoal herdado da mãe, ao acervo das bibliotecas e setores diversos dentro e fora da França, pelos lugares impressos nos roteiros avivados pela correspondência, são peças de um complexo quebra-cabeças do qual Mireille, como uma quantidade sem fim de perseguidos pelos regimes totalitários, não dispõe da peça principal: o que fizeram do ente querido levado para satisfazer apenas o mórbido ódio que alimenta homens contra homens com a turva visão de que uns são melhores que outros.

As andanças do pai pela Europa de quando serviu ao exército francês no front, de quando passou a ser um inimigo dos próprios franceses, depois um perseguido da polícia de Hitler e um membro do movimento de Resistência que com a coragem terá conseguido salvar milhares dos braços nazistas estão refeitas pelas andanças da escritora que se não alcança reabilitar o passado – ninguém terá esse poder, nem mesmo os céticos historiadores – constrói o possível, isto é, aquilo que afinal é toda história. “Esses Gustav, esses Ernst, eu os encontrei todos nos documentos mofados, eu os vi andar, cuspir, vomitar, arrotar e denunciar. Eu os desentoquei entre os inúmeros documentos que examinei durante dias e noites. Hoje, construo uma realidade, emprestando-a dos outros. Essa invenção não é uma mentira, ela se torna minha verdade”. História e memória são componentes essenciais desse relato que é uma reafirmação de que o conteúdo da ficção nunca é uma mentira como sugere aqueles que o colocam em relação contrária e não contígua com a realidade vivida.

Aqui chegando encontramos o motivo do enigma proposto pelo título dessa obra. Depois de vistoriar uma diversidade de missivas dos pais, Mireille encontra com as do tempo em que eles usavam não o francês mas o romeno como comunicação. A tradução desse material leva a investigadora a descobrir uma espécie de código entre os correspondentes: se a carta fosse escrita com tinta azul, tudo que ali estava escrito era verdade, se com vermelha, mentira. Estratégia contra a censura. Entretanto, uma das cartas depois do trato estava escrita com azul mas o conteúdo expunha o que era de se esperar de uma carta escrita com vermelho. Esse exercício reafirma o que dizíamos no parágrafo anterior e justifica o título da obra. Com tinta vermelha escreve-se o possível, mas este é testamento das evidências do vivido.  

Para um tempo em que história parece cumprir mais uma de suas voltas – haja vista ascensão perigosa de setores escusos da sociedade em toda parte do mundo, a começar pela Europa desde 2008 – testemunhos como o de Mireille Abramovici são fundamentais e necessários. É preciso resistir. Manter-se em alerta constante. Em vigília. Reanimar as engrenagens desse passado cujo incentivo do contemporâneo tem sido sempre o de esquecê-lo para refazer um novo tempo é uma urgência. Sempre foi. E cada vez mais se assume como tal. 

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