Os clássicos nos fazem críticos

Por Carlos García Gual 

Ulisses e as sereias. Otto Greiner

Como destaca Alfonso Berardinelli (em Ler é um risco), os livros que qualificamos como “clássicos” não foram escritos para ser estudados e venerados, mas, antes de tudo, para ser lidos. O renovado e largo fervor de seus leitores tem sido o que deu prestígio a alguns livros e os mantém vivos ao longo dos séculos. Talvez por isso há quem acredita que esses escritos de outros tempos não são de fácil acesso, são desatualizados e distanciados de nós e mantidos única e exclusivamente por uma retórica acadêmica. Contra tão vulgar prejuízo parece-me excelente o conselho de Berardinelli: “Quem ler um clássico deveria ser tão ingênuo e presunçoso como pensar que esse livro foi escrito precisamente para ele, para que ele se decidisse a lê-lo”. Cada clássico convida a um diálogo direto, porque suas palavras não se perderam com o tempo, e podem ser tão atrativos hoje como quando foram escritos, para quem se arrisca a viajar sobre o tempo com sua leitura.

Ler um clássico não apresenta maior risco que a leitura de algo atual de certo nível literário. Isto é, exige uma vivaz atenção, e talvez certa lentidão, para chegar a captar com precisão o que nos diz por cima dos ecos de sua voz baixa do passado. Mas além das convenções de estilo, o que caracteriza um livro clássico é o fato de que persiste em existir porque foi interessante, emocionante e capaz de sugerir apaixonadas leituras entre os leitores de qualquer tempo. Classicus quer dizer em sua origem “com classe” ou “de primeira classe”, segundo os mandarins da crítica; mas os grandes clássicos não requerem leitores muito seletos nem com título especial, mas inteligentes e despertos, porque versam sobre aspectos essenciais da condição humana. Um livro clássico é o que pode reler-se uma e outra vez e sempre parece inquietante e sedutor porque nos comove e questiona, às vezes no íntimo e, como escreveu Italo Calvino, “sempre tem algo a mais que dizer”. Por isso se salvaram do grande inimigo de toda cultura: o esmagador esquecimento (falo dos livros, mas vale o mesmo para os clássicos da música ou das outras artes).

Acredito que haja dois tipos de clássicos: os universais (que mantém seu vivaz impacto inclusive através de suas traduções) e os nacionais (aqueles cujo prestígio está ligado à frescura e beleza de sua língua de origem). Assim, Cervantes, Shakespeare  e Tolstói estão no primeiro grupo; e Góngora e Ronsard, melhor no segundo. É evidente que a lista canônica pode variar segundo as épocas. Só os clássicos mais indiscutíveis sobreviveram às várias flutuações da avaliação crítica. Virgílio e Horácio permanece, enquanto que Estácio despareceu desde os finais da Idade Média, e o fabulista Esopo, já no século XX. Os clássicos mais antigos do Ocidente são os gregos, que já os romanos liam como tais e modelos a serem seguidos.

E em sua sobrevivência os clássicos não vivem mumificados, mas sempre renovam sua mensagem. Porque a interpretação não está fixa mas varia segundo as leituras numa tradição que não só os preserva mas que os reinterpreta. Não lemos o Dom Quixote como os leitores do século XVII. A tradição literária posterior pode modificar nossa concepção dos temas e personagens descobrindo perspectivas diversas. Inclusive cada leitor pode matizar sua reinterpretação. Depois de ler Kafka encontramos elementos pré-kafkianos nos autores antigos. (Isso acontece também com os heróis míticos. A tradição renova máscaras sobre figuras literárias; como acontece com Prometeu, Édipo, ou Fausto e Dom Juan, por exemplo).

Por outro lado, também as descobertas dos estudos históricos nos fazem compreender melhor um texto, ao descobrir novos aspectos de seu contexto e sua formação. Pensemos, para dar só um grande exemplo, em tudo o que sabemos hoje do mundo que evocam o contexto em que surgiram os poemas homéricos, isto é, sobre a Ilíada e a Odisseia. Agora conhecemos a época em que se forjaram esses cantares e o modo de composição muito mais do que sabiam os eruditos de há um século e meio e muito mais do que pensavam a respeito Platão e os filólogos de Alexandria. Nosso conhecimento progrediu graças a três audazes personagens: Heirinch Schliemann (que descobriu as ruías de Troia), Milman Parry (que estudou a técnica da épica oral arcaica) e Michael Ventris (que decifrou o silabário micênico B). Nenhum deles era um acadêmico nem um filólogo professional, mas com estupendas descobertas abriram um novo horizonte em nossa visão sobre o homérico. Graças aos novos dados arqueológicos conhecemos melhor essa Idade Obscura que, em sua nostalgia que fazia um passado mais glorioso, deu um impulso decisivo à épica com o canto e o culto dos heróis micênicos.

E, sem dúvida, acima de todos esses estudos, o essencial respeito à sobrevivência de Homero segue sendo a inigualável força narrativa de sua poesia. O que mantém nossa lealdada à Ilíada e à Odisseia como perenes clássicos não é seu panorama histórico nem o manejo magistral de fórmulas e epítetos de grande tradição oral. É a magnânima recriação com que um poeta reconta os mitos heroicos ao mesmo tempo que dá a esse legado mítico uma perspectiva de aura trágica com figuras inesquecíveis. É a sensibilidade do leitor que salva do esquecimento esse mundo de fascinantes heróis e fabulosos deuses, como fez ao longo de tantos séculos e tantos modismos.

Há evidentemente clássicos mais fáceis de ler, isto é, textos em que o leitor entra fácil e fica logo marcado por seu singular encanto, clareza de estilo e sua fantasia ou emotividade. Por exemplo, a Odisseia, os poemas de Safo, Heródoto, O banquete, de Platão, ou O burro de ouro de Apuleio, para citar alguns autores antigos. Outros custam mais e inclusive podem produzir certa recusa quando são mal eleitos ou forçados como leituras obrigatórias em idades inoportunas, tornam-se árduos, difíceis de entender. Sem dúvidas, a característica dos clássicos, bem escolhidos e enfocados, é que sua leitura deia sempre na memória um terreno, uma pegada teimosa em nossa imaginação e aguçam nosso olhar sobre aspectos importantes da vida.

De todos os modos é preciso reconhecer o grande papel que tradicionalmente a escola assumia na conservação e difusão desses livros de longo prestigio. Ainda o mantém, mas de forma mutilada e desalentada. Que a escola deva ensinar o que significam – para nós – os grandes livros, e estimular a sua leitura com entusiasmo para a formação do gosto e a crítica pessoa, não acreditam alguns pedagogos nem sequer os políticos do ramo, pouco ilustres. Essas leituras tropeçam em muitos obstáculos: planos de ensino que reduzem a literatura à mínimas participações no currículo escolar, professores com pouco ou nenhum simpatia pelos textos de outras épocas. Muito bem analisa Marc Fumaroli em A educação da liberdade. Por outro lado, nossos estudantes, com exceção de alguns jovens, não frequentam os livros de muitas páginas, porque preferem as mensagens mínimas e disponíveis em outros suportes.

Os clássicos são inatuais: justamente isso é o que é mais valioso: falam de coisas que estão muito além do presente efêmero e abrem outros horizontes e oferecem ideias sobre o mundo que vão muito além do atual e cotidiano. E nos fazem críticos, céticos e mais imaginativos.

Voltando a algo já apontado. Ler os clássicos deveria talvez iniciar-se na escola, mas é importantes relê-los ao longo da vida, porque, volto a sublinhar, sempre que podemos estabelecer ou prosseguir o diálogo com eles. Um curioso exemplo é o de David Denby, que conta sua experiência pessoal em Os grandes livros. Editor e escritor de sucesso, decidiu ensaiar uma curiosa experiência: voltar a ler a fundo os clássicos. “Em 1991, 30 anos depois de me matricular na Universidade de Columbia, voltei às aulas, me sentei entre os estudantes de 18 anos e li os mesmos livros que eles. Juntos lemos Homero, Platão, Sófocles, Kant, Hegel, Marx e Virginia Woolf. Aqueles livros...” Parece-me um exemplo digno de se imitar: uma aventura que vale a pena ensaiar. E cada um pode tentá-la. Os clássicos seguem aí, ainda nos falam e são de tratamento amável.

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* Este texto é uma versão livre para "Los clásicos nos hacen críticos" publicado no jornal El País.




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