Cinco esquinas, de Mario Vargas Llosa

Por Eugenio Fuentes



A vida das grandes figuras sempre serviu de interesse às pessoas comuns. Surpreende encontrar em Ifigênia em Aulis, de Eurípedes, um texto do século V antes de Cristo, as seguintes palavras: “Os ricos e famosos sonham ser o centro da atenção de todos os mortais. Entretanto vão dizendo: se realizará um himeneu ou o quê?” Em Shakespeare apresenta-se a mesma ideia em Noite de Reis, quando afirma: “Já sabeis o que as pessoas dizem do que faz a nobreza?”

No Século de Ouro espanhol, os lugares públicos onde se reuniam os charlatões a comentar rumores e notícias tinham um nome irônico muito adequado: os mentideros. Talvez porque não se suspeitasse que não era verdade tudo o que ali se dizia. E Henry James, com sua penetrante capacidade de observação, estabelece em The Reverberator (1888) o diagnóstico definitivo de tanto interesse, através da voz de um jornalista visionário que decide fundar um jornal dedicado aos assuntos do coração: “Bom, quero dar à agente o que ela quer [...]. Aí é onde está o futuro, e o homem que primeiro dê conta disso será o homem feito de ouro. [...] É um trabalho duro [...] o quer a gente é justamente o que não se conta e eu vou contar”.

Mario Vargas Llosa, que começou a escrever há sessenta anos e continua escrevendo depois de chegar a democracia, a revolução sexual, o genoma e a ovelha Dolly, a corrida espacial, a Internet e o império do espetáculo, e de tudo isso vai deixando uma lúcida crônica em seus livros, aborda também neste seu mais recente romance, Cinco esquinas, e introduz uma novidade substancial: a utilização do jornalismo de fofoca como uma poderosa arma de desprestígio pessoal ou político, como uma ferramenta demolidora de chantagem, difamação e aniquilação do adversário.

Ambientada no Peru dos últimos anos do século XX e do regime de Alberto Fujimori, numa Lima sob o toque de recolher, amedrontada pelos atentados, assassinatos e sequestros de Sendero Luminoso – trágico oximoro – e do Movimento Revolucionário Túpac Amaru, uma de suas personagens principais, o Doutor, maneja a imprensa do coração com esses objetivos. Sob esse apelativo se esconde Vladimiro Ilich Montesinos, que foi o chefe dos serviços de inteligência peruanos durante o governo de Fujimori. Montesinos não se prendeu à tortura, corrupção e utilizando a imprensa cor de rosa publicou montagens e falsas notícias de orgias ou perversões para aniquilar os opositores do regime. Assusta pensar o que haveria feito hoje tendo à sua disposição as redes sociais.

Vargas Llosa já havia falado sobre o triunfo e expansão desse tipo de jornalismo em A civilização do espetáculo. Nesse livro de ensaios dizia que sua proliferação é outra das consequências de a diversão haver se convertido em entretimento entre os valores supremos desta civilização. Sob o sacrossanto direito à liberdade de expressão e de informação, o jornalismo sério se banalizou e se rendeu ao sensacionalismo para satisfazer a malsã curiosidade, “essa curiosidade corrói as vastas maiorias a que nos referimos quando falamos de ‘opinião pública’. Essa vocação maledicente, escabrosa e frívola, dá o tom cultural de nosso tempo, e é sua imperiosa demanda que toda a imprensa, tanto a séria quanto a descaradamente sensacionalista, se vê obrigada a atender, em graus diversos e com habilidades e formas diferentes.”. E contra essa funesta tendência não achava remédio.

Em Cinco esquinas volta a insistir na questão com sua maestria comum para converter em personagens e episódios dramáticos as abstrações sociais, políticas e econômicas. As referências ao tema são abundantes, agora em forma de diálogo: “A morbidez é o vício mais universal que existe [...] Em todos os povos e em todas as culturas [...] Queremos conhecer os segredos dos outros, de preferência os segredos de cama [...] Meter o nariz na intimidade de pessoas conhecidas. Dos poderosos, dos famosos, dos importantes. Políticos, empresários, esportistas, cantores etc. [...] satisfazer sua curiosidade mórbida, seu apetite por bisbilhotice, o prazer imenso dos medíocres, a maioria da humanidade, ao saberem que os famosos, os respeitáveis, as celebridades, os decentes também estão feitos do mesmo barro imundo que todos os outros”.

Embora lide com a ficção, o leitor tem a sensação de que Vargas Llosa fala sobre personagens que poderiam ser reais. Quem não terá visto alguma vez algum desses programas de televisão interessados na vida íntima alheia – algum Rolando Garro, irônica paronomásia de Roland Garros, para destacar mediante o contraste com o aviador e tenista francês a insignificância do medíocre e pequeno jornalista sensacionalista? Quem não terá folheado uma revista como a Revelações enquanto faz hora para uma consulta médica?

Vargas Llosa dedica os quatro capítulos iniciais do romance para apresentar os quatro protagonistas, suas relações e o entorno político social que lhe rodeia: o primeiro capítulo, Marisa; o segundo, seu companheiro Enrique; terceiro, Chabela; quarto, Luciano Casasbellas, advogado. Os quatro escondem algo, o que os converte em possíveis vítimas dessa imprensa: Enrique, uma escabrosa orgia na qual foi metido e pela qual será objeto de chantagem; Luciano, suas verdadeiras origens familiares; Marisa e Chabela, sua clandestina relação amorosa. Os quatro são representantes da burguesia capitalista de Lima, cujo frívolo comportamento social Vargas Llosa nunca questiona. Frente a eles, Rolando Garro é a concretização do pior jornalismo sensacionalista. E, por cima de uns e outros, o Doutor, dominando todas as intrigas, formatando a vida pública. E mesmo as personagens não sendo complexas, nem multifacetadas e compreensíveis numa só leitura, o romance finda refletindo a sociedade peruana, com essa imbricação entre o privado e o público que sempre tem interessado ao autor.



Em “Um redemoinho”, o esforçado capítulo vigésimo, onde se misturam sem separação tipográfica vários diálogos diferentes entre todos as personagens, como se uma acumulação de vozes relatando o desenlace, se aprecia a mão mestra de Vargas Llosa, a perfeição de sua técnica narrativa. Embora essa técnica se mostre bastante visível para quem sempre defende um estilo transparente, cuja textura nunca deve colocar-se como empecilho para uma relação direta entre as emoções e experiências das personagens com o leitor, aqui ela se enfraquece, não se mostra na antiga rapidez das reflexões do autor, sua capacidade para gerar uma formidável tensão que leve o leitor a outras paragens e o impeça fixar-se nos recursos empregados.

Tampouco as torções e americanismos sonham com aquela dureza mineral tão expressiva de seus grandes romances. As limitações se mostra mais abertas, como se quisesse compensar a falta de contundência dos diálogos, como se vê na conversa entre o engenheiro Enrique Cárdenas e Rolando Garro, no segundo capítulo. Nesta mesma linha, o abuso do diminutivo justaposto a substantivos comuns e próprios, adjetivos, formas verbais no particípio e advérbios resulta coerente na condição de Cinco esquinas como romance secundário na grandiosa bibliografia do autor.

Noutro aspecto, as páginas mais picantes não caem nunca na pornografia gratuita. Vargas Llosa, que não é um hipócrita, descreve com elegância, frescor e valentia as cenas lésbicas em que as mulheres são deixadas de ser meros objetos de prazer a serviço do homem para converter-se nas verdadeiras protagonistas de suas relações e renova esse interesse pela literatura erótica que se mantém desde que, em 1955, descobriu a coleção Les maîtres de l’amour, dirigida por Guillaume Apollinaire, escondidas em seus volumes por detrás de um biombo da biblioteca do Clube Nacional de Lima, onde ganhava algum dinheiro como ajudante de bibliotecário.

Cinco esquinas começa sendo um relato erótico, passa a ser um romance negro e finda uma história de denúncia política contada por um narrador onisciente nada autoritário, que nunca nos diz o que devemos pensar. De leitura muito amena, tem o virtuoso hálito narrativo de seu autor, sua enorme sabedoria para evitar incongruências e manter em todo momento o controle e a coerência das ações das personagens, porque é impossível que Vargas Llosa as faça cair num romance: as mantém sempre seguras com poderosos fios, nada está preso só com alfinetes. E ainda que em muitos aspectos seja admirável esta criação de um octogenário que não tem nada de crepuscular e que conhece tudo sobre a perversidade do poder e das debilidades humanas, desde uma profunda experiência que lhe impede sentir escandalizado, também, paradoxalmente, participa de algumas das características das sociedades do espetáculo que o autor havia descrito: predomínio do entretenimento sobre o discurso lento e racional, as atitudes frívolas como o sexo, maior interesse por descrever como se as personagens realizam o ato sexual e se cansam, vestem, viajam, decoram suas casas ao invés de indagar por seus temores mais profundos, suas emoções e pensamentos.

O motivo argumentativo que provoca o drama é raso. Mas uma razão rasteira pode desencadear uma tragédia. Um livro não é grande porque trata temas grandiosos, mas por tornar grandiosa qualquer insignificância, como com tanta convicção havia defendido o próprio Vargas Llosa em A orgia perpétua, seu ensaio sobre Flaubert, ao afirmar que Madame Bovary, sem a perfeição de seu estilo, não deixaria de ser um folhetim vulgar. E essa tragédia é o que se anseia aqui, o que acaba por não se sentir nessas páginas cujo conflito dramático melhor se parece com uma farsa. O leitor – ou talvez este leitor – não se comove pelo sucede aos quatro protagonistas, a quem lhes falta a conturbada força vital, o vigor e efervescência de outras ocasiões. Inclusive a violência de Sendero Luminoso, que é citada uma outra vez como panorama de fundo, nunca chega a se perceber como uma verdadeira e dolorosa ameaça, como foi para a sociedade peruana. 

* Este texto é uma versão livre de "Amaryllo y negro".



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