Doutor Fausto, de Thomas Mann

Por Rafael Kafka



Thomas Mann é dono de uma obra ambiciosa de todos os pontos de vista, apelando para uma escrita que exige demais do leitor quando diante das densas histórias contadas pelo escritor alemão. Em seu texto, há a marca da erudição de alguém que se propôs a conhecer as mais variadas áreas do saber e as diversas correntes ideológicas de seu tempo, colocando-as para embates homéricos do ponto de vista dialógico no decorrer das cenas de seus romances. Há também em sua escrita o desejo de não falar apenas de uma pessoa. Mann, como os antigos autores de epopeia, escreve sobre coletividades.

Porém, não há mais em seus romances o universo harmônico e o convite ao desbravamento que outrora havia nos relatos heroicos de seres como Homero. Thomas Mann é autor de romances e o romance é uma arte feita em tempos modernos e desconstruídos, nos quais o mundo não é mais um espaço harmônico e cheio de esperança. O mundo se mostra um espaço de individualidade perdida, de absurdo, de discurso sobre si mesmo em procura de uma unidade de ser inalcançável.

No sanatório que abriga a história de A montanha mágica isso se evidencia demais. O enredo é algo muito insólito, quase que um não-enredo, enquanto ao nosso redor vemos uma série de discursos se confrontando, expondo a forma como veem o mundo e como se veem. Ao mesmo tempo, esses seres parecem entender o que é visto pelos outros, mas não aceitam tais verdades. O mundo polifônico é o mundo de seres que buscam desesperadamente uma fórmula para o entendimento de uma realidade absurda, mas não a acham. Cada ser carnavalizado e estranho daquele sanatório representa um discurso dentro da desordem que é a Europa no começo do século passado.

Os destinos individuais em si não importam tanto, pois o coletivo é que determina o rumo de tais destinos, ou antes sua falta de rumo. Vemos em Mann o ser humano angustiado pela liberdade de ser e pela indefinição desse mesmo ser perdido em seu desejo por um rumo definido. Tal sentimento de perdição está condicionado ao modo como as coletividades interagem entre si, também desesperadas em descobrir o que elas são em sua essência. Sobre isso fala Doutor Fausto.

Não sei se por ter lido os dois livros praticamente em sequência, mas A montanha mágica e este último se combinam demais dentro de minha mente no retrato panorâmico do caos identitário que até hoje impera em nossa cultura. A diferença sempre me parece ficar por conta do atrevimento temporal de Mann no romance de Hans Cartorp, exibindo como a temporalidade é o modo como sentimos a realidade, como lidamos com ela no sentido de modificá-la de acordo com nosso desejo. A história de Adrian Leverkuhn foca mais diretamente na questão da identidade, seja no sentido individual de um ser cujo projeto de vida é a construção de uma grande obra, seja no plano coletivo de uma nação cujo sonho de soberania e de encontro consigo mesma leva ao nazismo.

Não é mais em um sanatório que se passa o enredo, que dessa vez não tem mais a aparência de um enredo e sim de um quebra-cabeça cujas peças se encaixam de forma simétrica nos desejos de Adrian em se deparar com o mesmo ninho de sua vida juvenil já na fase adulta. O enredo se passa em dois tempos distintos, com a narrativa em contraponto de dois caminhos no rumo da ruína.

A história é narrada por Serenus Zeitblom, amigo de Adrian, que demonstra profundo amor pelo amigo, um amor quase passional. O recurso criado por Thomas Mann cria um obstáculo natural que se mostra bastante interessante do ponto de vista da recepção da história. Sem o recurso do narrador onisciente, não percebemos como é o interior de Adrian e vemos dele apenas traços externos, como o constante riso zombeteiro, as crises de enxaqueca e o gosto pela teologia que depois vira amor pela música. Destarte, a figura de Adrian se mostra opaca e resistente a um olhar mais arguto ao seu ser, o que talvez reforce o modo complacente com o qual Serenus relata as desventuras do amigo.

A impressão que fica em leitores como eu, apaixonados por essa busca essencial e ontológica por algo que não existe – a definição perfeita de um ser que busca ser seu próprio sentido – é que Adrian se volta para a teologia com o intuito de procurar uma transcendência rumo a algo maior do que ele, no qual pudesse se perder. Depois, descobre ser essa possibilidade a música. De certa forma, Adrian recupera o velho mito do artista cujo ápice existencial é a produção de sua obra, na qual ele se imortalizará.

É esse o motivo para a retomada do velho mito fáustico, que já fora bem explorado em vozes como Goethe e Dostoiévski. Por sinal, o diabo de Mann lembra demais o diabo que surge para Ivan Karamazov, mas enquanto aquele servia de revelador das intenções mais obscuras de Ivan para si mesmo, o que surge para Adrian oferece-lhe a ilusão da plenitude, de se ver completo em sua obra, de ultrapassar todos os limites humanamente imaginados em troca de sua alma. A cena é muito bem construída de modo a nos levar a pensar, assim como em Os irmãos Karamazov, se realmente o diabo surgiu na história ou se ele se revela como um duplo, como um ser o qual revela ao outro o que este é mas ignora ou finge ignorar que é.

De qualquer modo, Mann se utiliza da cronologia das duas grandes guerras para mostrar paralelos entre o tempo de outrora e o tempo de agora e a existência do amigo e a existência alemã. O diabo alemão foi o nazismo com seu desejo de soberania, com sua tentativa de definir com perfeição o que é o povo alemão e extirpar do solo germânico o mal da exterioridade. A derrocada alemã é a derrocada de Adrian e os dois processos de pacto, os quais são culminados de forma maravilhosa no último parágrafo do livro, são o processo de tentativa de encontro consigo mesmo e de um profundo desespero com os olhos presos a esse objetivo.

Se em A montanha mágica Mann parou o tempo em um microcosmo cheio de vida, aqui ele explora o tempo como algo cíclico, como algo cheio de idas e vindas de fatos os quais devem ser entendidos em sua raiz para, quem sabe, não serem mais vividos pela espécie humana. Sua obra se torna então mais ambiciosa, pois ele consegue aliar a polifonia herdada de um autor como Dostoiévski com um interesse ideológico claro, o qual porém não subjuga personagens a sua intenção central. O narrador de Thomas Mann é bastante participativo, não assumindo o tom protocolar do narrador do grande romancista polifônico russo, como diria Bakhtin, e esse fato acaba servindo como gerenciador de sentidos para os leitores que se aventurem nessa obra.

Isso faz com que Mann, creio já ter dito em outro momento, se revele ao mesmo tempo um grande escritor e um grande escrevente humanista, denunciando tudo aquilo que pode colocar a humanidade como espécie e sentimento de existência a perder. Diante de nós, há longos e intensos debates sobre verdades acerca do mundo, da arte e de outros temas, ao mesmo tempo que o narrador em alguns pontos cruciais surge e diz qual é a temática central de tudo aquilo, o nó que une aquelas situações. Em A montanha mágica é o tempo vivido, é o marasmo de um temporalidade prestes a se anular, numa vida horizontal que é o puro sentimento de fuga e de isolamento diante de um mundo em greve; Doutor Fausto são as raízes do totalitarismo, que não estão necessariamente ligadas ao ódio por outras etnias, e sim a esse mal-estar da pós-modernidade que nos leva querer nos entender anulando o outro se for possível.

Thomas Mann é um escritor de coletividades por ver nelas os reflexos das individualidades que definem seus rumos. Coletivo e individualidade para Mann se ligam profundamente e estão o tempo todo em diálogo e por isso sua obra é uma convergência muito interessante do discurso romanesco como exploração das idiossincrasias humanas e do discurso épico como exploração dos caminhos traçados pelas coletividades em sua busca por harmonia. Mesmo escrito há várias décadas, Doutor Fausto é um grande romance por mostrar como tanto no âmbito individual de nossas mentes quanto no foro social de nossas vidas somos capazes de vender a alma ao diabo – em um delírio ou não – desde que em troca venha um pouco de harmonia e de trégua diante de toda a angústia que carrega o ato de viver e de descobrir.

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Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

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