A incorreção política do sublime Dahl

Por Eugenio Monjeau 



Li estas linhas pela primeira vez quando tinha sete ou oito anos: “Isto não é um conto de fadas.  Fala sobre BRUXAS DE VERDADE. As BRUXAS DE VERDADE vestem roupa normal e têm um aspecto muito parecido com o das mulheres normais. Vivem em casas normais e fazem TRABALHOS NORMAIS. Uma BRUXA DE VERDADE passa o tempo todo tramando planos para desfazer-se das crianças de seu lugar. Sua paixão é eliminá-las, uma por uma. É a única coisa em que pensa durante todo o dia. No que se refere aos meninos, uma BRUXA DE VERDADE é sem dúvida a mais perigosa de todas as criaturas que vivem na terra. O que faz dela ser duplamente perigosa é o fato de que não parece perigosa. Até poderia ser – e isto te fará dar um salto – tua encantadora professora, a que te está lendo estas palavras neste mesmo momento”.

Nos vinte e dois e vinte e três anos que passaram, nenhum início de nenhum livro me deve haver cativado tanto como este. Agora, relendo-o, vem em minha mente termos como genialidade ou originalidade, mas naquele momento minha impressão deve haver sido quase física. Depois de tudo, estava começando um livro que prometia explicar-me como fazer para não ser atacado por uma BRUXA DE VERDADE ao sair à rua.

O livro solta precauções: sempre usam luvas – têm garras ao invés de unhas – e nunca as verá descalças – não têm dedos nos pés. É uma narrativa didática sobre o tema que lhe dá título: As bruxas.

Num mundo em que – aceitamos uma mistura de tristeza e alegria – não há bruxas, o livro também é didático sobre modos que são muito mais úteis para o menino leitor.

As bruxas conta a história de um menino e sua avó, que cuida dele depois da trágica morte de seus pais. Estão de férias num hotel na costa britânica quando descobrem que ali é celebrado o Encontro Anual de Bruxas da Inglaterra, na presença da mesmíssima Grande Bruxa Mundial. No transe dessa descoberta, o menino, nosso protagonista e narrador, se vê transformado num pequeno rato, mas salva sua vida, além da possibilidade de pensar e falar como um menino normal. A avó aceita a situação com inteireza e se junta com seu neto roedor para exterminar todas as bruxas do hotel.

O plano funciona perfeitamente: todas acabam mortas. Nosso protagonista não recobra nunca sua forma humana e ele se torna o centro de um dos maiores momentos do texto. Depois de comemorar com sua avó pelo vitória, o  menino lhe pergunta quanto tempo vive um rato. A avó diz que estava esperando a pergunta e que, dado que ele não é um rato, mas um menino-rato, podiam esperar que viveria até uns oito ou nove anos mais. Ele diz (de um modo muito cômico e desacertado) que é a melhor notícia que poderia haver recebido: que não queria morrer antes que ela e que ninguém o fizesse mais feliz que saber que vão deixar juntos este mundo, não sem antes seguir combatendo todas as bruxas que se cruzem pela sua frente.  

Quando contei a história a minha mãe depois de haver terminado de ler a narrativa pela primeira vez, estava tristíssima ante o curto futuro que esperava uma criança da idade de seu próprio filho. Eu, ao contrário, havia entendido totalmente o protagonista e não podia está mais de acordo com ele. 

A genialidade de Roald Dahl é a mesma que a de qualquer bom mestre: seguir o que há de bom no menino (no menino protagonista e no menino leitor, irmanados instantânea e indissoluvelmente) e buscar  desenvolvê-lo. Uma pessoa de sete, oito ou nove anos carece de sentimentalismo; é curiosa, inteligente e prática. É óbvio que o menino-rato parece a avaliação mais sensata da situação. Isto é, o que a adaptação para o cinema de 1990 – cuja única virtude é a Grande Bruxa ser encarnada por Anjelica Huston – ignorou quando decidiu que apareceria uma bruxa boa (!) e o transformaria em humano novamente.

Em Boy, o primeiro volume de memórias, Dahl conta várias das experiências traumáticas que viveu nos internatos inglesas nos quais foi educado. Em particular, dedica uma atenção especial aos espancamentos que alguns dos diretores escolares davam aos meninos naquele tempo. O mais brutal dos que conheceu era o da prestigiosa escola secundária Repton: “Se alguém me havia dito nessa época que aquele padre flagelador ia chegar a ser um dia arcebispo de Canterbury, jamais havia acreditado. Foi tudo isso, me lembro, o que fez com que começasse a levantar dúvidas sobre a religião e inclusive sobre Deus” (segundo Donald Sturrock, biógrafo de Dahl, foi outro diretor de Repton que terminaria sendo Arcebispo de Canterbury).

Que a interpretação seja tão óbvia não a torna menos verdadeira: Dahl apresenta em seus livros, uma e outra vez (o esquema em Matilda, por exemplo, é idêntico ao de As bruxas), uma criança que, acossada por algum adulto malvado (que pode ser inclusive um de seus próprios pais), executa, em geral em cumplicidade com outra criança ou com alguns dos poucos adultos bons que dão voltas por aí um brilhante e truculento plano de vingança. O que não conseguiu em sua própria vida dá às suas personagens, e nesse caminho ensina a seus leitores, a milhões deles, a importância da compreensão.

Para uma pessoa que reconhece não acreditar em Deus, ou ter dúvidas sobre ele, mas que ao mesmo tempo não deixa de ser, a seu modo, um moralista, alguém que acredita na justiça e na virtude (disse Dahl que a máxima qualidade que pode ter uma pessoa antes da coragem e da valentia, é a amabilidade e a bondade), a vingança é um elemento fundamental da vida humana. Se uma pessoa é boa e lhe causam danos se vê obrigada a idealizar uma maneira de proteger-se. Nas narrativas de Dahl essa proteção implica, além de tudo, num ato de maior dimensão: ao matar as bruxas se salvam todas as crianças da Inglaterra; quando Matilda se desfaz da tirânica diretora de sua escola primária faz um favor a todos os seus companheiros. Qualquer criança entenderia isso.

Em tempos de uma correção política cada vez maior, que já se podia prever com a horrível adaptação de As bruxas e que se confirmou há pouco quando uma das principais cadeias de supermercado da Austrália retirou de seus locais o livro Revolting Rhymes pelo uso da palavra slut (zorra – isto é, um termo que se supõe não tão mal como outros), o fato de que Dahl tenha existido e tenha escrito o que escreveu é quase um milagre.

Roald Dahl me ensinou – além de haver me ajudado a cultivar um humor bastante negro – a valorizar a inteligência sobre a força, sobretudo, a desconfiar da gente que se empenha em parecer demasiadamente boa. Pode-se pensar uma contribuição maior ao espírito de uma criança?

Cinco livros de Roald Dahl indispensáveis aos pequenos e grandes leitores

O bom gigante amigo. Este foi desde sempre o livro preferido do próprio Dahl. Nele o leitor encontra a história da pequena Sofia e sua amizade com um estranho ser que, ao contrário dos outros moradores da Terra dos Gigantes, sempre de olho em transformar os "serumanos" em sua próxima refeição, se dedica a colecionar sonhos e soprá-los secretamente no quarto das crianças à noite. O livro inspirou o filme de mesmo nome, realizado pelo diretor Steven Spielberg.

Matilda. O livro conta a história de uma menina que seus pais são muito maus e só gostam do filho. Ela é superdotada, mas seus pais, implicantes, não conseguem enxergá-la e obrigam-na a assistir programas televisivos que não acrescentam em nada na educação das pessoas, negando-lhe inclusive a leitura de livros. A criança, então, mais tarde tramará um plano para se vingar do pai. A obra também já ganhou adaptação para o cinema; em 1996, por Danny DeVito.

A fantástica fábrica de chocolates. Charlie Bucket é um rapaz inteligente de uma família pobre; mora com seus pais e avós. Destes quatro, especialmente o avô Joe, ouve histórias sobre o fabricante de doces Willy Wonka e da fábrica de chocolates que ele construiu. À medida que o tempo passa, o dono da fábrica começa a suspeitar que suas receitas estão sendo roubadas para empresas rivais. Fechada, Wonka realiza um concurso mundial para selecionar quatro figuras para uma longa turnê pela fábrica. A obra foi adaptada duas vezes: em 1971 e em 2005; a última adaptação foi realizada por Tim Burton com Johny Depp como Wonka.

O fantástico Sr. Raposo. Num vale há três fazendas que pertencem a três fazendeiros mesquinhos: Boque, Bunco e Bino. Na colina, acima do vale, moram Seu Raposo, Dona Raposa e suas quatro Raposinhas. Todos os dias Seu Raposo cumpre os gostos da mulher em ter sempre boa caça na mesa: uma galinha bem gorda do Boque, um pato ou um ganso do Bunco ou um pero do Bino. A história é sobre como a personagem enfrenta toda sorte de armas, pás, tratores e espingardas dos três fazendeiros para continuar alimentando sua família.

O remédio maravilhoso de Jorge. Jorge é um menino que quando fica em casa tem a companhia pouco agradável de sua avó ranzinza e mandona. Um dia, resolve que o melhor a fazer é criar uma poção mágica especial que transforme a mal-educada velha numa pessoa mais feliz. Mas o remédio maravilhoso de Jorge, uma junção de tudo o que ele vai encontrando pela casa, provoca reações muito estranhas que não a esperada pelo pequeno pretendente a bruxo.


* A primeira parte deste texto é uma versão para "La incorrección política del sublime Dahl"


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Dalton por Dalton

Boletim Letras 360º #575

Boletim Letras 360º #570

Boletim Letras 360º #574