Os ídolos de Thomas Mann


O Prêmio Nobel de Literatura alemão não deixou passar em branco a resposta para uma pergunta que deve rondar a cabeça de todo curioso por saber de um grande quais são os seus mais admirados. Claro, não nos deixou uma resposta pronta, que talvez grande parte deles não a tenha, mas, do que muito escreveu, sobretudo de ensaios sobre música, teatro e literatura, de prólogos, conferências, sabe-se as faixas de uma radiografia com os ídolos do autor de A montanha mágica. Neles, Mann aproxima-se de figuras como Wagner, Goethe, Tolstói, Zola, Tchekhov e de obras como Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Um excelente prosador, nenhum pouco pretensioso, que escolhe a anedota para chegar ao público.

“Se me perguntarem que paixão, que relação emocional com as manifestações do mundo, da arte e da vida, considero a mais bela, mais alegre, proveitosa, imprescindível, responderia sem hesitar: é a admiração” – afirmava Thomas Mann. O grande escritor sustentou que dela é a fonte do amor, a raiz de todo talento, e que onde falte ou essa característica, por assim dizer, se extinga, não brotará nada e reinarão o empobrecimento e o deserto. Tal é a declaração de princípios e o motivo dominante nos textos incluídos em seleções como O escritor e sua missão – título ainda que certamente impreciso e breve, é uma ampla representação do labor ensaístico do autor de Os Buddenbrook.

Thomas Mann nunca destacou nem como admirador nem como crítico das obras literárias de seus contemporâneos; apenas resenhava-os ou mesmo elogiava-os por compromisso e sem qualquer paixão. Até os romances de Hermann Hesse, por quem tinha uma grande amizade, são tratados friamente. Reservou sua paixão e sua condição de leitor meticuloso, o entusiasmo e até a crítica para aqueles autores cujas obras imortais o fizeram sonhar na juventude, sendo o sonho mais recorrente chegar a ser ele mesmo um afamado escritor e construir obras tão impressionantes como as que tanto gostava.

Os textos aí reunidos expressam principalmente toda a dívida de Thomas Mann com os autores que admirou quase desde a infância e aqueles aos quais se manteve fiel ao longo de sua vida. Estes prólogos, conferências, ensaios de diversa extensão esboçam assim uma radiografia conceitual do escritor com indubitável atrativo para qualquer um interessado por seus gostos incondicionais, mas também para quem quer aproximar-se de outros autores universais pela mão de um excelente prosador, nada acadêmico que sabe chegar ao seu público melhor através da conversa e a pintura viva do caráter sem se ater a circunlóquios eruditos.  

Os três tomos da série "Thomas Mann - Ensaios & Escritos publicados no Brasil" que melhor revelam sobre os "gostos" artísticos do escritor alemão.


Uma pena é que, no Brasil, a edição destes textos tenha sido tão interessada no mercado a ponto de dedicar outros dois livros – Pensadores modernos e Travessia marítima com Dom Quixote – quando poderia ter publicado todos eles numa só obra, sobretudo se olharmos para o segundo título. Afinal, o que difere, em termos de textualidade dos da edição de O escritor e sua missão para o livro um ensaio sobre a obra de Cervantes é unicamente a extensão; isto é, enquanto Mann escreve textos muito breves sobre o teatro – Fontane, pai dessa obra-mestra que é Effi Briest –, Strindberg (estes ainda não incluídos nos tomos publicados no Brasil) ou Zola, o Travessia marítima é mais extenso e, consequentemente, mais rico.

Nele, o escritor combinou deliciosamente suas agudas observações de leitor sagaz com seus pedantes comentários de alheio passageiro de primeira classe para tratar de uma obra-prima da literatura moderna. Era 1937 e partia para o exílio nos Estados Unidos; acompanhava-o a leitura da tradução alemã de Ludwig Tieck; sabedor da longa viagem nunca se ateve – e mesmo fora da viagem – com leituras ligeiras, escritas com o propósito de adiar longos tédios. Nada lhe parecia entretenimento nem mais interessante que grande literatura, no amplo sentido do termo.

“Sofrimento e grandeza de Richard Wagner”, texto que aparece incluído em Pensadores modernos redesenha a veneração que Mann sempre sentiu pelo autor de Tristão e Isolda, precisamente os patéticos acordes que esta ópera constituíram, como ele próprio diz, “a pátria de sua alma”. Mas, além do exímio compositor, Wagner havia sido também um poeta só comparável aos grandes espíritos épicos do século XIX, como Charles Dickens, Dostoiévski, Liev Tolstói, Balzac ou Marcel Proust. Acompanha a leitura sobre pensadores, a relação de Mann com a obra de Nietzsche e Schopenhauer – compondo assim a “tríade de espíritos eternamente unidos”, no dizer do escritor. E Freud. Freud e o despertar da psicanálise.

Voltando aO escritor e sua missão, destaquemos “Goethe como representante da era burguesa”, um esboço sobre o pensamento, por assim dizer, do autor de obras fundamentais para a literatura, tais como O sofrimento de Werther, autor a quem Mann admirava profundamente. Tanto que, a Goethe, “um dos diletantes mais completos e universais dos que já viveram”, dedicaria o seu romance Lotte in Weimar.

Outros textos desse livro são de menor interesse – não pelo que representam, mas para o que são para o próprio Mann; são notas sobre Tolstói e seu Anna Kariênina, “o romance social maior da grande literatura universal”, ou sobre o demoníaco Dostoiévski. Os breves apontamentos sobre a complexa psicologia do autor de Crime e castigo servem para traçar um esboço de toda uma teoria da enfermidade que serve de estímulo à criação nos grandes artistas. O tom do texto se amplia para a homenagem quando chega a vez de falar sobre Tchekhov; sobre o outro russo, Mann ressalta a humildade pessoal, a beleza moral e a profundidade psicológica dos seus contos.

Fora a sabedoria da editora em trocar o conveniente pelo rentável, são esses três volumes indispensáveis a quem estiver interessado em saber mais do escritor, sua formação, influências e modos de ver outros colegas de profissão; há outros textos por vir que ampliarão as peças da complexa face do escritor.


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