Não é meia noite quem quer, de António Lobo Antunes


Por Pedro Fernandes



“não temos certeza se existiu ou nos deram imagens que amontoamos na esperança de conseguir o que se chama vida”. Este fragmento coletado de Não é meia noite quem quer* bem poderia servir de síntese temática sobre esse romance ou ainda de chave de leitura sobre os títulos da obra mais recente de António Lobo Antunes, estes que foram lidos pelo próprio escritor como a revisão obsessiva de um mesmo livro. A razão para tanto – a da síntese – é também enunciadora dessa afirmativa que o português faz sobre a sua obra.

Novamente, estamos diante do limiar da condição humana – território sobre o qual tão bem a literatura antuniana tem se construído. A voz que domina esse complexo labirinto de idas e vindas da memória ou esses lapsos que surgem numa e desaparecem noutra vez do pensamento é de uma mulher marcada por uma diversidade de perdas; o conjunto de iluminações nasce do seu reencontro com o passado através da visita à casa onde viveu até antes do casamento. É um fim de semana tomado pela revisão sobre grande parte dos episódios de um tempo quando o pai ainda vivo é um palerma, a mãe uma mulher visceral que não despreza a traição com os funcionários de grande monta que visitam a casa quando na ausência do companheiro sempre a se queixar do filho surdo – sua cruz, o irmão surdo que costura a narrativa com um refrão que também será síntese da obra – “Ata titi ata” (uma das variantes) e o irmão que foi para a Guerra Civil em África (ou não foi?) e suicidou-se jogando-se do penhasco para o mar, o que torna em figura obsessiva nos reflexos dessa narradora; narradora que está num casamento apagado, interrogando-se sobre sua própria sexualidade pelo suspeitoso envolvimento com a amiga Tininha, com a vida marcada pela perda de um seio para o câncer e do aborto de um filho – para citar outros três dramas maiores.

De fato, a presença do irmão suicida é a mais forte entre os frangalhos de recordação, que é afinal o corpo da obra; está alinhavada por uma extensa quantidade de trivialidades do dia-a-dia comum de uma menina de forte pendor introspectivo, às voltas na invenção de diálogos com e entre as árvores de próximo à casa onde vive ou inquieta ante o ir e vir dos pássaros, o fluxo do mar e, além da paisagem, também os objetos que estão no seu entorno; de uma menina que lembra continuamente determinadas situações, aquelas que ficam presas e vão e vem como flashs toda vez que se confronta com o passado: uma ida à praia, os passeios de bicicleta com o irmão mais velho, as trapalhadas do irmão surdo, as queixas da mãe, o silêncio do pai envolvido pela bebida, as idas à venda do bairro, o contato com os poucos vizinhos etc. É afinal um passeio entre ruínas cujo interesse é coisa nenhuma; não estamos, por exemplo, ante uma personagem como é Maria Clara de Não entres tão depressa nessa noite escura, interessada em construir a história de seu passado a fim de se compreender na figura que é no presente da recordação. Não é meia noite quem quer é um fluxo contínuo do que vem à memória de alguém que depois de tanto tempo é confrontado com um passado que jurava apagado, mas está apenas adormecido.

Por citar Não entres tão depressa nessa noite escura e este romance, é válido pensar na presença da noite como traço simbólico de aproximação e distinção das obras. No primeiro, o apelo é propulsor da ação contrária: uma viagem aos confins de noite, que é a um só tempo esse passado que assume a vida da personagem e a escuridão de seu próprio eu. No título ora lido, a afirmativa é quase uma tese a ser corroborada pela extensa visita a uma existência tomada pela presença recorrente da perda. Note-se, entretanto, que o tema perda é recorrente num e noutro romance; é a obsessão contínua de António Lobo Antunes com sua literatura. Em Não é meia noite quem quer é como se o autor estivesse interessado em dizer, depois de compreender a biografia de sua personagem, que nem todos estão condenados à escuridão da existência mas é para os que estão que devemos (ou a literatura deve) virar sua atenção. Isto é, o escritor irmana-se com parte mais frágil da humanidade, essa que é margem e passa despercebida aos olhos dos que estão imersos demais na correria da vida contemporânea e já não são mais capazes de ver os tragados pelo peso de existir ou o que a existência lhe reservou de contínua dor.

A sugestão do tema só estará nascida na leitura integral do romance e é uma poderosa estratégia ou desafio que o escritor lança para o leitor do mesmo lugar habitado pela poesia; não é o título de um poema uma fresta pela qual se espreita o volume de sua forma dada na leitura integral da peça? Pela recorrência nessa estratégia chamada pelo escritor de contraepopeia, talvez seja exagero nenhum dizer que António Lobo Antunes se afirma com um autor de exímios poemas em prosa, já que sua narrativa nos propicia a mesma obsessão interior experimentada pela personagem; obriga-nos à posição de desassossego no sentido mais sincero dessa palavra.

Se lembrarmos que do passado toda a grande literatura se manteve porque cultivou o verso ou que essa era a forma perfeita para traduzir também uma totalidade da existência e olharmos para o presente para ver que ao verso reduziu-se o conteúdo da lírica marcadamente descontínua e fragmentada também não será exagero dizer que o retorno feito pelo escritor português é uma resposta de, no mesmo desejo que sustentou a narrativa – o de melhor dizer sobre a realidade – melhor dizer sobre os movimentos internos do eu, única maquinaria que, fraca, resiste complexa mente frente a um mundo de indivíduos e que já não é mais campo de aventura e experimentação para o homem.



É preciso dizer que a leitura de Não é meia noite quem quer, assim como a de nenhuma obra contemporânea, não está feita apenas se esbararmos na compreensão do cerzido das histórias engendradas pela narrativa (no caso do romance ora lido, trazidas pela memória da narradora); é preciso que o leitor tenha a mesma disposição aventureira de singrar por esse labirinto verbal para instalar algumas curiosidades que o permitam sair do universo aberto do romance a fim de buscar na possível rede de diálogos construídos pela obra e melhor sentir as filigranas da narrativa. Alguém terá dito sobre a poesia de Ezra Pound e a de T. S. Eliot que são tessituras marcadas pelo enigma estrategicamente arquitetado pelos poetas a partir da transfiguração de suas próprias Babel; na outra margem alguém terá chamado isso de incompetência poética porque uma vez decifrada a charada, o que sobraria do texto, se não uma velharia de palavras? Mas, será que os dessa margem terão conseguido tornar o poema em sucata ou terão sido sucateados pelo tempo?

No caso de António Lobo Antunes há ainda outra linha que é necessário avivar entre os nomes que melhor terão dado ao texto o fôlego para tornar seus leitores tomados pela incapacidade de vencer integralmente as malhas do texto: a de sempre nos dá um novo texto – não só pela revisão da interpretação porque passa os sentidos de todo leitor mas pela possibilidade de descobrir outras narrativas igualmente possíveis ante a que formamos na primeira leitura ou a que nos é entregue pelas sinopses em notas como estas. O escritor faz o texto prolongar-se no infinito. Uma continuidade alimentada toda vez que despertamos os seus livros e sobre a qual nunca temos controle. Um exemplo? O citado caso da ida ou não do irmão dessa narradora de Não é meia noite quem quer para a Guerra em África. Alguém poderá perguntar, afinal, qual importância tem isso para o andamento do romance e basta pensar que uma coisa é o suicídio ter sido um não definitivo à imposição de ir ao front e outra coisa é o suicídio ter sido depois de haver estado num inferno na terra. Há no primeiro gesto uma atitude de heroísmo muito cara às personagens antunianas, em grande parte, fiapos de gente teimando em alçar algum voo a partir do convívio doloroso com o passado e o presente; essa personagem do romance ora lido, é um exemplo, não será alguém cujos sentidos se voltam cada vez para o irmão porque assim se vê em sua condição existencial? Já se a atitude tiver sido fruto do pós-guerra, amplia-se o legado medonho, a crítica ao Estado facínora, capaz de tornar homens em zumbis tal como é aquele soldado atormentado em Os cus de Judas.    

Sobre a necessidade de visitar outros lugares com os quais flertam essa narrativa, fiquemos com o título e a informação oferecida pelo romancista na epígrafe de que esta é uma frase de René Char; depois veremos, frase não, um verso do poema “De relance”, do poeta que integrou por um tempo os vultos do surrealismo francês, René Char: “Semeio com minhas mãos, / Planto com os meus rins; // É muda a chuva fina. // Numa estrada estreita, / Escrevo o meu segredo. // Não é meia noite quem quer // O eco é meu vizinho, / A bruma, a minha sequência”. Essas informações e a leitura do poema são, como vê, esclarecedoras sobre o romance: à medida que compreendemos o traço ou o tônus surrealista que corre de uma ponta a outra a narrativa, sabemos estar ante uma narradora que exercita-se na compreensão íntima (e pública quando somos seu espectador) de seus segredos feitos de ecos do passado e imprecisos da mesma maneira que uma bruma, incapaz de se rever como uma imagem pura e limpa porque isso não é o que somos, sobretudo quando somos noites. Agora, isso desaba o edifício verbal que é a obra? De maneira alguma. Amplia-o, permite ao leitor renovar o encanto pela narrativa e reinaugurar seu itinerário por ela.


* Apesar de ter sido publicada no Brasil como "Não é meia-noite quem quer", decidi usar a grafia original do título.

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