Não neva na Califórnia, Bandini: breves notas sobre “Espere a primavera, Bandini”, de John Fante

Por Salvador J. Tamayo



Não faz muito tempo que li um artigo assinado por Juan Villoro sobre Roberto Bolaño onde falava da maneira como o chileno havia se convertido em lenda aos olhos do mundo. Sem dúvida é o melhor texto que já li sobre o escritor. Villoro fala do amigo, do outsider, do maldito finalmente venerado pelo stablishment e sobretudo do escritor; da maneira como sacrificou a vida pelo romance e o que é mais importante, do óbvio da vida no romance. Cabe incidir sobre este último ponto relacionado a John Fante e a Arturo Bandini. Sobre a vida de John Fante, Juan Pérez Mercado escreveu um artigo bastante coerente, cuja leitura é recomendável para os que queiram abordar a literatura do escritor estadunidense.

Espere a primavera, Bandini, publicada em 1938, é uma das obras protagonizadas por Arturo Bandini; as outras são Pergunte ao pó, O caminho de Los Angeles e Sonhos de Bunker Hill.

Para conhecer realmente um país há que conhecer sua história e ler seus melhores escritores. Fante mostra os Estados Unidos; melhor dizendo, sua lupa incide sobre uma realidade concreta que se reproduzia em inícios do século XX nos Estados Unidos. A Grande Depressão, em finais dos anos 1920, o período durante o entreguerras, presumiu levar uma parte do país a adotar um modo de vida praticamente de sobrevivência. Os personagens de Fante são sobreviventes da crueldade do momento que tiveram de sofrer: o desemprego do pai, a perversão consciente dos valores tradicionais que vinham impostos desde a idealizada pátria-mãe Itália (família, religião e uniões pessoais) e a relação entre todos os arquétipos dos personagens com a estrutura maior do relato.

“Desconfiava da família Bledsoe, da casa ao lado: a sra. Bledsoe que não deixava o seu Danny e o seu Phillip brincarem com aquele menino Bandini porque ele era (1) um italiano, (2) um católico e (3) um menino mau, líder de um bando de arruaceiros que despejavam lixo na sua varanda da frente todo Halloween”.

A situação que vivia os Estados Unidos propicia para que o instinto caçador de escritores como Faulkner, Steinbeck e o próprio Fante entrasse nos problemas dos homens e de como estes se articulam com seu entorno, não sem antes descrever seu modo de vida e um imaginário particular que soma os sussurros individuais e os converte num canto coletivo. Esta única voz faz as vezes de totalidade elevando a obra e convertendo finalmente seu autor em lenda. Não é uma lenda quem narra as penúrias de alguns imigrantes italianos no primeiro terço do século passado, é lenda quem consegue encaixar num exercício mestre de economia linguística uma cosmologia familiar única que se reafirma ao longo de pouco mais de duzentas páginas (a extensão quase definitiva dos romances de Fante). E não faz só uma vez, mas continua demonstrando isso em cada relato posterior. Um dos elementos para chegar a este status, desejado por uns e negado num ato de falsa modéstia por outros, é a maneira como os leitores de distintos momentos recebem sua obra. O tempo, por sua vez, faz as vezes de juiz e capataz.

A família de Arturo Bandini (seu pai, sua mãe e seus dois irmãos) se mostra sem artifícios e inclusive cabe destacar que muitas das coisas que me horrorizaram ao ler a obra de Fante são vistas com total normalidade ainda hoje em alguns estratos sociais de vários países: a submissão da mulher que ataca o marido descontrolada pelas baixas paixões por sua infidelidade, a forte pressão do direito divino sobre quase qualquer aspecto da vida que faz inclusive com que os filhos se perguntem continuamente o que é o pecado e o que não é, e finalmente, a agressividade machista de Svevo (o pai) que parece reproduzir-se em seus filhos já que o modelo de conduta paterno, longe de parecer-lhes depreciativo, é o que termina impondo-se como uma espécie de lei natural sobre os três pequenos, posicionando-se quase sempre do lado do pai e rara vez preocupando-se com o estado da mãe. Fazem por pura sobrevivência já que é ela quem cobre suas necessidades mais imediatas ante a ausência contínua do pai. A relação de Arturo com seu pai faz que queria ser como ele, mas não de uma maneira admirada como mentor, mas da forma em que rouba o cetro a um tirano. Inclusive Arturo Bandini justifica a infidelidade do pai, com uma viúva rica para quem trabalha ocasionalmente, com a seguinte sentença: “– Só porque Mamma não tem roupas bonitas...”

Arturo Bandini se descobre desde o começo da história como dois fragmentos que o definem com precisão insultante:

“Era Arturo e adorava o pai, mas vivia no temor do dia em que cresceria e seria capaz de bater nele. Venerava o pai, mas achava que a mãe era fraca e tola”.

“Tinha 12 anos e tomar consciência de que sua mãe não o excitava fez com que a detestasse secretamente”.

Poderia interpretar-se os personagens como vítimas de sua circunstância social, um modelo que se reproduz nos filhos e estes por sua vez o propagam como um vírus infame aos seus descendentes até o fim dos tempos. “O contexto social faz com que sejamos como somos”, seria a leitura mais fácil. Mais fácil e também a mais estúpida já que o próprio John Fante narra muitas de suas experiências pessoais da infância e da adolescência neste romance mas decide não ser um desgraçado como seu pai e sim quem começa a contar, a contar-se, a contarmos. E os roteiros de cinema, a partir dos quais ganhou outra vida, completam seu retrato com as mãos calejadas como se fossem parte de seu DNA; uma vez adulto, compartilha de gostos e certos comportamentos próprios do personagem de Svevo.

O mais fascinante de Espere a primavera, Bandini é a figura do pícaro. Fante trata de estabelecer certa distância entre a história e si próprio optando pelo narrador em terceira pessoa, talvez ofendido ante a ideia de recordar-se em cada palavra e em cada gesto do adolescente Bandini. Os meninos com sorte representam o melhor do homem, e não escrevo isso com a nostalgia da juventude perdida, ou pior ainda, roubada, não. Os jovens representam os desejos da vida ante tudo e ante todos, representam o egoísmo, a superação, a inocência e a crueldade que ostentam com orgulhoso instinto e as quais envergonharia qualquer adulto preso aos códigos morais dominantes. 

Leio Arturo Bandini e recordo os garotos de Os incompreendidos, de Truffaut (1959), Zé Pequeno, de Cidade de Deus (2002), Zezé do romance mais lido de José Mauro de Vasconcelos Meu pé de laranja lima e por que não dizer, o nosso lazarillo. Arturo Bandini mata um galo com uma pedra a sangue frio pelo prazer de vê-lo morrer, talvez como ânsia do psicopata que não chega a converter-se ou do menino curioso que sensivelmente sabe que passa e só quer “ver como passa”. Arturo Bandini presenteia a uma menina por quem se apaixona com um camafeu e é desprezado e é cúmplice da atitude de seu pai, o homem que admira e detesta. 

E John Fante é Arturo Bandini e Arturo Bandini às vezes é John Fante. E a primavera nunca chega enquanto a neve com a qual Svevo limpa os olhos ensanguentados e se livra das marcas das unhas da esposa, a neve sobre o qual caminha Arturo, a neve que se derrete como uma estrela, a neve não acaba enquanto chega à Califórnia.


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