Assim na terra, de Luiz Sérgio Metz


Por Pedro Fernandes

Luiz Sérgio Metz. Arquivo da família (por Anahy e Pedro Metz)

Uma visita a alguns dados biográficos sobre Luiz Sérgio Metz – é sempre necessária quando o autor não é tão conhecido pelo leitor, embora seja um conhecimento quase desprezível para a leitura de Assim na terra, não fosse o modo como esta narrativa está desenvolvida – mostra que foi um autor de pouca obra. Estreou na literatura em 1977 com a publicação de três contos no volume Histórias ordinárias, uma edição com tiragem limitada organizada pela Cooperativa de Escritores Gaúchos; quatro anos depois, O primeiro e o segundo homem, edição também de contos. Em 1986 publicou a biografia do poeta Aureliano de Figueiredo Pinto, e em 2006 (editado postumamente) um relato de viagem a cavalo pelo sul do Rio Grande do Sul.

A impressão que ficará de quem inicia a leitura de sua obra por este Assim na terra – livro publicado em 1995, ainda antes da morte do escritor – é que a breve obra de Metz se inscreve no rol daquelas que negaram a extensão pela intensidade, sobretudo quando o assunto é, o labor com a palavra, a língua e a linguagem da narrativa. São poucos os nomes que pertencem a essa verve e alguns são muito bem lembrados ao longo deste romance: os poetas do haicai japonês, como Bashô, Haroldo de Campos (ao qual vale acrescentar Guimarães Rosa), Ezra Pound, T. S. Eliot (James Joyce), Mallarmé, Kafka, Goethe. Pode ser uma impressão ingênua feita por um leitor que desconhece a outra ou grande parte da obra de Metz, mas não qualquer impressão porque tomada a partir da leitura de um texto sobre o qual nenhum leitor sério deixará de registrar como um dos mais importantes para a cena literária nacional, principalmente quando a linha a que for se referir incluir a chamada literatura do stream of consciousness.

Há em Assim na terra pelo menos três viagens que se interseccionam, são como se formassem uma só: a do narrador que ora anda, ora cavalga pelo extremo sul gaúcho (e aqui está a única relação mais relevante, possivelmente, entre a biografia do autor e a narrativa), a da memória e da escrita. Este é um romance sobre a possibilidade de um romance; logo, é a viagem possível a que estariam resumidas todas as viagens é a da linguagem. O exercício que deixa entrever não apenas aquilo que é peça de bastidor como penetra mais profundamente nos volteios da consciência e sua relação quase extensiva da imagem soletrada pela visão, decantada pelo campo cerebral e no esforço de tradução pela escrita.

Como se quatro haicais em prosa – denominação encontrada pela confluência de características entre o exercício poético e o narrativo, como a objetividade e o tema – o romance inicia e finda com quatro fragmentos descritivos. Os da introdução funcionam como se fossem quatro tomadas de câmera, quatro fotografias, de uma mesma paisagem e sua transformação apenas pela mudança das estações do ano, como se fosse a mesma cena no sentido de denotar o tom quase (mas nunca) monótono da natureza, aqui marcada pela presença da voz que interpela a Gomercindo.

Se estes quatro primeiros textos remetem ainda certo espírito das cidades do interior do Brasil, num tempo quando eram mais paradas que hoje, os quatro últimos, também intitulados pelas estações do ano, demonstram movimento; concentram-se em certo traço de modificação da paisagem e nas atividades cotidianas desse lugar inominado ora recuperado pela ficção de Metz.

E, por falar em lugar inominado, o único espaço nomeado é onde se encontra o narrador em certa parte da narrativa, que, além dos quatro fragmentos que a ladeiam, como se quatro textos à parte, se desenvolve em três capítulos. Chama-se Pensário e é uma espécie de galpão para o qual o narrador é levado por Gomercindo, a segunda personagem que habita toda a narrativa e se desenvolve como se um mentor da escrita da personagem-narradora. Não se pode falar, entretanto, de protagonistas – ao menos no sentido estrito da palavra, o de se referir à personagem ou figura que possui um relevo na narrativa. O grande protagonista desse romance é a língua portuguesa.



Assim na terra, que ora lembra um fragmento do Pai-Nosso, mas é uma referência explicita ao poema de T. S. Eliot do qual Metz extrai a epígrafe desse livro, “A terra desolada”, é construído por uma prosa bem desenhada, pensada, sobretudo pensada, e prensada, que requer do leitor tempo (tal como diante do poema) para sorver os sentidos e experimentar as possibilidades ensaiadas para o dizer; dito muitas vezes de dupla face. O escritor bebe com sede do exercício de fundir o erudito com o popular (aqui, o vocabulário do habitante do extremo sul do país, região onde a língua portuguesa se perde nas linhas de fronteira com a língua espanhola); uma atividade recorrente nos nomes acima citados – Rosa bebe da língua do sertanejo do interior de  Minas Gerais, Joyce, da língua popular da Irlanda, Kafka, quem se refaz linguisticamente porque escreve numa língua que não é a sua materna.

A intersecção popular-erudito e erudito-popular, ou de línguas em extremidade é a possibilidade encontrada pelo escritor de refundar a língua de uso corriqueiro, falada ou escrita, uma tarefa sempre atribuída com maior recorrência ao ofício do poeta, mas que os grandes escritores em prosa sempre tomaram para si como prática indispensável na sua composição. Desse modo, além da língua, obras dessa natureza diluem, ou se não, esgarçam as rígidas fronteiras impostas pela teoria dos gêneros. É também uma maneira de universalização da cor local; se Metz ora lembra Guimarães Rosa, James Joyce ou Franz Kafka, em nenhum momento se confunde com eles, porque o universo de cada escritor é uno e diverso, há entre eles o seu lugar nunca negado, sempre recriado; perfazem o conselho de Liev Tolstói sobre o verdadeiro exercício do escritor é o de cantar sua aldeia tornando-a universal.

Outro aspecto indispensável de enumerar, quando o assunto é reafirmar o poder da poesia na constituição da prosa – algo vivo desde a epopeia de Homero ou de Goethe – está na maneira como o escritor elabora esse exercício de fronteiras ao ponto de não o tornar artificial, como é muito comum em certos autores que se entregam gratuitamente ao desvario do impulso mental ou que querem apenas escrever difícil para parecer bonito, autores de uma literatura de qualidade. Esse caráter é marcado pela forte incursão do pensamento, não este de suposições vagas sobre a realidade ou a situação evocada, mas aquele colhido na leitura de natureza filosófica. Metz demonstra, antes de tudo, que é um leitor arguto. Assim na terra se afirma como um romance em que a experiência se converte em estado puro de linguagem; ao menos essa é a obsessão desse narrador ao longo de se incursão por construir uma obra durável pela desde sua forma, própria e autêntica.

Sérgio Metz prende o leitor, mas o leitor precisa sentir o texto, integrar-se à sua correnteza – tal como sucede a um leitor de António Lobo Antunes para citar outro nome diferente dos enumerados até agora; prende, mas não o sufoca, obriga-o a mergulhar na narrativa, sentir a pulsão da palavra, o mover-se da escrita, a agitação dos sentidos a partir da construção minuciosa (por vezes minimalista) das imagens ora filtradas do que vê esse viajante, ora lembradas de um tempo remoto que não sabemos se o vivido pela personagem, ora criadas como se imaginasse as situações a partir do que vê, ora ainda é pausa para que esse viajante ouça o folego do que busca narrar. A leitura de Assim na terra obriga uma linearidade do olhar do leitor, uma concentração e fôlego.

Dos dois percursos que o narrador faz, um a pé, outro a cavalo (uma clara ressignificação do tema da viagem na literatura) há quatro situações que merecem ser sublinhadas; são situações que ocorrem no primeiro trajeto – o segundo, parte é realizado à noite e parte de olhos vendados como se uma prenda de Gomercindo sobre a reexperimentação dos sentidos e do contato com o mundo. Enquanto essas situações assinalam um reposicionamento homem-experiência, as primeiras elucidam claramente sobre a necessidade da experiência como matéria primordial para criação literária: o escritor não cria apenas pelo que vê através da imaginação, mas pelo que vivencia.

Assim, esse herói do pampa, encontra-se com um grupo de performers que ganha a vida com música barata, álcool e estripulias, depois, a visita a uma casa abandonada e perto de desmoronar onde prevê uma série de situações possíveis vivenciadas no passado (criações que se misturam com suas impressões sobre o lugar). As outras duas situações são, o encontro com uma velha senhora que lhe faz predestinações tal como é recorrente na epopeia a recorrência da iluminação quase-mística para o exercício de narrar, e o encontro com Gomercindo, com quem divide a cena no restante do romance e na segunda trajetória física que desenvolverá depois de sair do Pensário.

O trajeto de aquisição da experiência passa pelo reconhecimento sobre o mundo, certificação sobre as coisas e o desenvolvimento dos sentidos sobre o que vê; o viajante não deve ser apenas alguém preso ao encantado contínuo processo de recolher materiais que venham lhe servir à composição da narrativa, precisa de construir novos sentidos de gustação do mundo. Essa saída para mundo o levará a uma viagem íntima e pessoal, para dentro; ou não é esse o percurso no Pensário, esse galpão de arquitetura surrealista para onde é levado por Gomercindo e cenário reservado à organização das experiências e construção do narrado?

Se todas as viagens são apenas uma – a da escrita –, como uma metanarrativa, Gomercindo ilustra bem esse outro com o qual a consciência do escritor dialoga. Um lugar com o exato nome derivado de pensar é um claro fiapo deixado por Metz dessa costura do romance para denotar que tudo em Assim na terra é viagem pelo pensamento. A figura enigmática desse outro com experiência muito além do eu-escrevente responde pelo imperativo da própria literatura, essa senhora capaz de sugar a existência do escritor no processo sisífico da escrita, senhora que é personalizada na imagem de uma mulher fatal na composição igualmente metafictiva de R. Roldan-Roldan em Litterata ou o doce sorriso do macho satisfeito, outra narrativa da literatura brasileira cujo tema é essa relação escritor-escritura. Ou ainda na melhor incorporação realista desse imperativo mítico da literatura, a figura do editor como patente em Fluxo-floema, de Hilda Hilst.

De modo que, Gomercindo é a incorporação viva do escritor: ser incompreendido pelos que o rodeiam, acusado de louco, mandado para o hospício (não estaria essa personagem envolta em elucubrações psíquicas nesse fosso de loucos?), ser que cada vez mais cava sua marginalidade no mundo, aspirando a solidão plena, buscando como errante experimentar-se, sentir-se vivo, ser o mundo.

Enfim, não ninguém quem possa, depois de ler esse romance aventurar-se a escrever coisa melhor ou não se sentir eivado por uma possessão sem explicações comum quando aliciado para esse mundo da literatura. Não é apenas o escritor alguém tomado por esse súcubo, o leitor, por outro lado, é um constante aliciado por outro, o da leitura. E uma coisa certa: os dois, se ferem, um e outro deixam cicatrizes fundamentais para a vida. 


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