Allen Ginsberg: o homem que destruiu o sonho americano


Por Neiva Dutra



Um dos escritores mais respeitados e aclamados da Geração Beat, Allen Ginsberg ocupa um lugar destacado na cultura americana do pós-guerra. Nasceu em 3 de junho de 1926, em Newark, Nova Jersey, filho de um professor de inglês expatriado da Rússia.

Sua postura, sempre avessa a convencionalismos, somada à sua pública homossexualidade, o converteram em um pária, mas também em um personagem cujo culto estendeu-se para muito além dos limites de sua passagem pela vida.

Em 1943, enquanto estudava na Universidade de Columbia, tornou-se amigo de William Burroughs e de Jack Kerouac e o trio, posteriormente, estabeleceu-se como a essência do Movimento Beat.

Conhecido por seus pontos de vista não convencionais e por um comportamento frequentemente revoltada, Ginsberg, assim como os amigos, também realizou experimentos com drogas e, em certa ocasião, utilizou seu quarto na universidade para guardar objetos roubados adquiridos por um conhecido. Perseguido por isso, decidiu declarar-se louco e, posteriormente, passou vários meses em uma instituição para doentes mentais.

Graduado, permaneceu em Nova Iorque e, em 1954, mudou-se para São Francisco, onde o Movimento Beat estava sendo organizado através das atividades de poetas como Kenneth Rexroth e Lawrence Felinghetti.


Publicou pela primeira vez em 1956. Howl, um poema com profunda inspiração em Walt Whitman, teve sua primeira leitura pública, pelo autor, em 7 de outubro de 1955 na Six Gallery de São Francisco. É um clamor de raiva e desespero contra a sociedade destrutiva e abusiva, considerado por alguns críticos da época um poema sexualmente explícito e cheio de ódio, um evento revolucionário na poesia americana.

A linguagem cruel e honesta do poema e seu “Hebraic-Melvillian bardic breath”, como Ginsberg a denominou, aturdiu muitos críticos tradicionais. Alguns deles referiram-se a Howl de forma depreciativa, como algo escrito sob a influência de forte emoção, mas que isso não bastava para se fazer poesia. Outros responderam de forma mais positiva, considerando o poema uma obra poderosa, com um significado dinâmico e potente.

Howl é um uivo contra tudo o que é mecânico na civilização moderna, tudo o que destrói o espírito. Sua força positiva e sua energia provêm de uma qualidade redentora do amor. Pode seguramente ser considerado um dos marcos da Geração Beat, desviando violentamente a poesia dos moldes tradicionais dos anos cinquenta.

Além da crítica, Howl surpreendeu o Departamento de Polícia de São Francisco. Devido à linguagem sexual gráfica do poema, o livro foi declarado obsceno e o editor, Lawrence Felinghetti, foi preso. O julgamento atraiu a atenção de todo o país, com figuras literárias importantes, como Mark Schorer, Kenneth Rexroth e Walter Van Tilberg Clark manifestando-se em defesa da obra de Ginsberg. Schorer testemunhou que Ginsberg utiliza os ritmos da fala comum e também a dicção da fala comum. Clark afirmou que Howl era a obra de um poeta completamente honesto e um técnico altamente competente.

Todas as palavras ditas em defesa da obra convenceram o juiz a declarar que não era obscena e transformaram Howl no manifesto do Movimento Beat, que incluiu, além de Ginsberg, escritores como Jack Kerouac e William Burroughs, Gregory Corso, Michael McClure, Gary Snyder. Todos escreveram na linguagem das ruas, sobre temas proibidos e não literários segundo os padrões tradicionais. As ideias e a arte dessa geração influenciou grandemente a cultura popular dos Estados Unidos durante os anos de 1950 e 1960.

Allen Ginsberg e seu companheiro, Peter Orlovsky


Em 1961, Ginsberg publicou Kaddish and Other Poems. “Kaddish”, um poema em estilo similar a Howl, baseado na tradicional oração hebraica pelos mortos e que conta a história da vida da mãe de Ginsberg, Naomi. Sentimentos complexos do poeta em relação à mãe, marcados pela luta que ela travou contra a doença mental são a essência da poesia, considerada como uma das melhores criações de Ginsberg, um de seus momentos mais puros e, para muitos, sua obra-prima.

Os primeiros poemas de Ginsberg foram influenciados por William Carlos Williams. Outra influência fundamental foi o amigo Jack Kerouac, cuja obra Ginsberg admirava e chegou a adaptar em seus próprios escritos – Kerouac escreveu alguns de seus livros colocando um rolo de papel em branco em uma máquina de escrever e escrevendo de forma contínua, em um fluxo de consciência. Tanto Williams como Kerouac privilegiaram as emoções de um escritor e o modo natural da expressão sobre as estruturas literárias tradicionais.

Ginsberg também citava como precedentes históricos dessa mesma ideia as obras de Walt Whitman, de Herman Melville e de escritores como Henry David Thoreau e Ralph Waldo Emerson.

Um tema importante na vida e na poesia de Ginsberg era a política. Kenneth Rexroth considerou esse aspecto de sua obra como um acatamento quase perfeito da influência de Whittman, de sua tradição de revolucionário na poesia americana. Em uma série de poemas, Ginsberg se refere às lutas sindicais da década de trinta, a figuras e elementos de esquerda. Em “Wichita Vortex Sutra, que busca acabar com a guerra do Vietnam através de uma espécie de mágica evocação poética. Em Plutonian Ode, a ideia é acabar com os perigos da energia nuclear através da mágica respiração de um poeta. Poemas como Howl, ainda que não expressamente de natureza política, são também contém uma forte crítica social.

As atividades políticas de Ginsberg são fortemente libertárias em sua natureza, fazendo eco de sua preferência pela expressão poética individual sobre a estrutura tradicional. Em meados da década de sessenta, que esteve estreitamente ligada à contracultura e aos movimentos contra a guerra, criou e defendeu o flower power, uma estratégia na qual os manifestantes contrários à guerra seriam os promotores de valores positivos, a paz e o amor, dramatizando sua oposição à morte e à destruição causadas pela guerra do Vietnã.

O uso das flores, dos sinos, dos sorrisos e dos mantras converteu-se em uso comum entre os manifestantes durante algum tempo. Em 1967, Ginsberg era um dos organizadores do Gathering of the Tribes for a Human Be-In, um evento nos moldes do mela hindu, um festival religioso. Foi o primeiro dos festivais contraculturais e serviu como inspiração para centenas de outros. Em 1969, quando alguns ativistas contrários à guerra organizaram um “exorcismo do Pentágono”, Ginsberg compôs o mantra que cantaram. Foi também testemunha de defesa na Chicago Seven Conspiracy Trial, na qual os ativistas foram acusados de conspiração para promover um motim, cruzando os limites estaduais.

Por vezes, a política de Ginsberg provocou a reação das autoridades policiais. Foi preso em uma manifestação contra a guerra em Nova Iorque, em 1967, e na Convenção Nacional Democrata, em Chicago, em 1968. Em 1972, foi preso por manifestar-se contra o então presidente, Richard Nixon, na Convenção Nacional Republicana, em Miami. Em 1978, ele e o companheiro, Peter Orlovsky, foram presos por sentarem-se sobre os trilhos para deter um trem carregado de resíduos radioativos procedentes da Rocky Flats Nuclear Weapons Plant, do Colorado.

Também teve problemas em outros países. Em 1965 visitou Cuba como correspondente da Evergreen Review e, por denunciar o preconceito contra gays na Universidade de Havana, o governo solicitou que deixasse o país. No mesmo ano, viajou à Checoslováquia, onde foi eleito “Rei de Maio” por milhares de cidadãos checos. No dia seguinte, o governo convidou-o a partir, por ser “sujo e degenerado”. Ginsberg atribuiu a expulsão ao fato da polícia secreta checa ter-se sentido envergonhada pela aclamação dada pelo povo a “um poeta norte-americano barbudo e drogado”.

Outra preocupação constante que se reflete em sua poesia é o enfoque espiritual e visionário. Seu interesse por esses temas inspirou-se em visões que teve durante a leitura da poesia de William Blake. Declarou que, nesse momento, ouviu “uma voz profunda e grave na sala, uma voz vinda da terra, que supôs imediatamente será voz de Blake”. Acrescentando que “o tom peculiar da voz foi algo inesquecível, já que era como Deus, mas tinha uma voz humana, com toda a infinita ternura, ancestralidade e gravidade mortal de um Criador vivo que fala ao seu filho”.

Essas visões provocaram um interesse pelo misticismo, que levou Ginsberg a experimentar, durante algum tempo, várias drogas. Alguns de seus melhores poemas, segundo o próprio Ginsberg, foram escritos sob a influência de drogas: a segunda parte de Howl, com o peyote; “Kaddish”, com as anfetaminas; “Wales - A Visitation”, com LSD. Após uma viagem à Índia, em 1962, durante a qual conheceu a meditação e o yoga, mudou sua atitude em relação às drogas, convencendo-se que a meditação e o yoga eram muito superiores às drogas na ampliação da consciência, mas defendendo que as drogas psicodélicas seriam úteis para escrever poesia: “psicodélicos são uma variante do yoga e da exploração da consciência”.

O estudo que realizou sobre as religiões orientais foi instigado pelo descobrimento dos mantras. O uso que os mantras fazem do ritmo, da respiração e dos sons, para Ginsberg, correspondiam a uma espécie de poesia. Em uma série de poemas que incorporam mantras ao texto, transforma a obra em uma espécie de oração poética.

Durante as leituras de poesia recitava um mantra para estabelecer o estado de ânimo adequado e seu interesse pelas religiões orientais o levou ao Venerável Chögyam Trungpa, Rinpoche, monge budista tibetano, que exerceu forte influência em sua obra. No início dos anos setenta frequentava o Instituto Naropa de Trungpa, no Colorado, onde também ensinava poesia. Em 1972, comprometeu-se formalmente com a fé budista.

Um aspecto fundamental do ensinamento de Trungpa é uma forma de meditação chamada shamatha, na qual o praticante concentra-se em sua própria respiração. Essa meditação, segundo Ginsberg, “leva primeiro a um apaziguamento da mente, a uma quietude da produção mecânica da fantasia e das formas-pensamento; conduz a uma aguçada consciência dos pensamentos e a um inventário destes”. O livro Mind Breaths, dedicado a Trungpa, contém vários poemas escritos com o auxílio da meditação shamatha.

Em 1974 e a poetisa Anne Waldman fundaram a Jack Kerouac School of Disembodied Poetics, como um ramo do Instituto Naropa de Trungpa. A ideia era fundar uma universidade de artes permanente, nos moldes da tradição tibetana, na qual professores e alunos vivessem juntos em um edifício permanente, que continua por centenas de anos. Atraiu, com a ideia, escritores destacados, com Diane di Prima, Ron Padgett e William Burroughs como palestrantes e professores na escola.

Relacionando sua poesia com seu interesse em questões espirituais, Ginsberg disse: “Escrever poesia é uma forma de descobrir quem eu sou e ir além do que eu sou, a vigília da consciência de um eu que não é quem eu sou. É uma forma de descobrir a minha própria natureza e a minha própria identidade, ou o meu próprio ego, ou de descrever o meu próprio ego e também perceber que parte de mim está além disso”.

Ginsberg viveu uma espécie de literatura “do lixo ao luxo” – desde seus primeiros dias como o temido e criticado poeta “sujo” até a sua posição posterior, no panteão da literatura norte-americana. Foi um dos poetas mais influentes de sua geração e marcou a história da poesia, pois nenhum outro poeta americano foi mais próximo do homem, sem nenhuma inibição, do que Ginsberg.

Durante toda a sua vida seu trabalho foi objeto de atenção acadêmica e, mesmo após a sua morte, sua influência e seu poder de permanência como figura da arte e da cultura americana permanecem inalterados.



Em 1994 foi lançado um documentário sobre ele, dirigido por Jerry Aronson, The Life and Times of Allen Ginsberg.

Novos poemas e coleções das suas obras continuaram a ser publicadas periodicamente e suas cartas, revistas e, inclusive, fotografias com companheiros da Geração Beat, despertaram a atenção de inúmeros estudiosos, que lançaram novos conhecimentos sobre a vida e a obra de Ginsberg.

Na primavera de 1997, já atormentado pelo diabetes e pela hepatite crônica, foi diagnosticado com câncer de fígado. Ao tomar conhecimento da doença, produziu rapidamente doze poemas curtos. No dia seguinte, sofreu um derrame cerebral e entrou em coma, falecendo dois dias depois, em 5 de abril de 1997.

A poesia de Ginsberg, nos últimos anos da vida, foi compilada em Death and Fame: Poems, 1993-1997, que inclui os poemas escritos imediatamente após o diagnóstico do câncer. A obra representa o apogeu perfeito de sua vida, uma poesia madura, cuidadosamente produzida, terna e elaborada.

Outra das publicações póstumas de Ginsberg é Deliberate Prose: Selected Essays, 1952-1995, que traz mais de uma centena de ensaios sobre temas como as armas nucleares, a guerra do Vietnã, a censura, poetas como Walt Whitman e Gregory Corso e outros luminares culturais, dentre os quais o músico John Lennon e o fotografo Robert Frank. A obra se revela encantadora, mais acessível do que boa parte de sua poesia.

Ginsberg gostaria de ser lembrado “como mais um na tradição do individualismo transcendental americano do passado”. Explicou certa vez que, dentre as falhas humanas, era mais tolerante com a raiva; que em seus amigos,  o que mais apreciava era a tranquilidade e a ternura sexual; que sua profissão ideal seria a de “articulador de sentimentos”.

No ano de 2010, Jeffrey Friedman e Rob Epstein escreveram, dirigiram e produziram Howl, um filme que a princípio deveria ser um documentário, mas que se converteu em um híbrido de documentário, drama e animação, seguindo cinco linhas diferentes: (1) uma suposta entrevista de Allen Ginsberg;(2) a primeira leitura pública do poema, dramatizada, por não haver imagens originais; (3) flashbacks biográficos de Ginsberg, dramatizados e acompanhados de imagens de arquivos da época; (4) animações que ilustram o texto em off do poema; e (5) o julgamento de Ferlinghetti, dramatizado.

Os idealizadores, apesar de serem premiados com vários prêmios Oscar e Emmy por alguns de seus documentários, enfrentaram dificuldades por anos até conseguirem distribuidor para Howl.
O filme inicia com os primeiros versos do poema:

Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas histéricas despidas, arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose enfurecida, hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao dínamo de estrelas na maquinaria da noite, que de pobreza esfarrapada e de olhos vazios e mocados se sentaram alto fumando na
escuridão sobrenatural [...]

Ligações a esta post:




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

A bíblia, Péter Nádas

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #576

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima