A amiga genial, de Elena Ferrante

Por Pedro Fernandes



Antes de tudo, gostava de me repetir sobre toda uma série de historiazinhas que vão formando uma aura mítica em torno da escritora italiana (ou escritor); resumo todas elas com essa impossibilidade de não precisar qual a verdadeira identidade de Elena Ferrante. Alguma vez escrevi que me chama atenção o sujeito da palavra que não necessita da exposição imposta pelo aparelho midiático (ainda mais nesse tempo de sorrisos falsos) e mantém um o trabalho silencioso para que, não a imagem, permaneça somente a obra. A história da literatura está cheia de figuras dessa natureza e, tomara que a italiana tenha tomado todas as precauções de fazer durar (ou quem sabe, nunca revelar, já imaginou?) quem é a autora (chamemos assim) por trás de sua obra. 

O livro que chegou ao Brasil agora em 2015 pelo selo Biblioteca Azul / Globo Livros é o primeiro de uma tetralogia designada por “série napolitana”, por cobrir parte significativa da história de um grupo diverso de núcleos familiares de uma pequena região da cidade de Nápoles pós-Segunda Guerra Mundial (embora, em A amiga genial, a narradora faça certo retorno aos anos 1940, é depois dos anos 1950 que ela concentra toda sua atenção). Esse grupo diverso de personagens é apresentado ao modo de uma peça de teatro logo na abertura do romance; não sei se com interesse de determinar para o leitor os limites familiares nunca determinados pela narrativa ou se apenas para facilitar que o leitor melhor se mova entre a diversidade de personagens, que, ressalta seja feita, não beira a uma quantidade tão assombrosa, mas a quantidade de apelidos ou modos de tratamento pode confundir os mais desavisados.

A marca que dá forma à narração é apresentada como um prólogo, espécie de cena de abertura, como naqueles filmes que demonstra parte do seu desfecho na introdução e suspende para esmiuçar toda uma série de situações até fazer um retorno ao ponto inicial e apresentar uma conclusão sobre o acontecimento. É como se, o escritor tivesse escrito um conto simples, dividido ao meio, e entre as duas partes, exercitado toda forma de digressão, ao ponto mesmo de fazer o leitor esquecer da primeira parte e, quando menos se espera, eis o desfecho! Como vê não há nenhum exercício mirabolante quanto à construção da narrativa e Elena retoma a tradição clássica de composição do romance, fugindo, em definitivo do exercício de complexificação da trama. Fora o acontecimento que abre o romance (e que possivelmente concluirá a série), todos os demais têm um desfecho imediato, tal como se se tratasse de uma novela, designativo, aliás, que me parece mais coerente para o texto.

Depois do prólogo, Elena divide o texto em duas partes, “Infância: história de dom Achille” e “Adolescência: história dos sapatos”. O leitor atento já terá percebido que o exercício literário da escritora é a composição de um romance de formação (tal como um As aprendizagens de Wilhelm Meister, de Goethe, nome que não vem aqui ao acaso), visto que é, bebe na fonte do gênero, ao concentrar toda a força dos acontecimentos no processo de crescimento mental e físico de uma personagem, pela qual perscruta todas as demais ao seu redor. É Elena Grego – nome todo cheio de suspeitas uma vez que se confunde com o pseudônimo da escritora e a narrativa, em primeira pessoa, alimenta-se tão somente do ir e vir de certa memória autobiográfica.

Custe o que custar, Elena preenche o estereótipo da heroína perfeita; vinda de uma família mais-ou-menos socialmente (o pai, não identificado, trabalha como contínuo na prefeitura e a mãe, também não identificada, trabalha como dona de casa), ela é a que por estímulo da professora dos primeiros anos escolares e certo apoio dos pais se dedica exclusivamente a ser uma aluna brilhante e aplicada, ainda que não se reconheça como tal, por certa ponta de inveja na capacidade sem esforço maior da amiga Lila, filha da família do sapateiro e sua melhor amiga, ou para repetir o efeito do título, que, aliás, não é um epíteto atribuído a Lila, mas esta quem atribui a Elena, "a amiga genial".

A ideia de heroína perfeita, evidentemente, é uma observação anotada ao acaso, de quem só acompanhou, até agora, as duas primeiras fases da vida da personagem. É possível que, diante o extenso trabalho de elaboração de si, digamos assim, aconteça algo na trajetória de Elena que lhe afaste desse rótulo. Se nos guiarmos pela maneira como se dá as reviravoltas na vida da amiga Lila, que apesar de mais nova faz tudo à frente do tempo de Elena, e já ficou demonstrado ter caído num imbróglio que fere de um todo o mesmo caráter perfeccionista que parecia ter tal como amiga, falta ainda muito para dizer um veredito final sobre a personagem.

Bom, sabendo que o título A amiga genial refere-se diretamente à personagem principal, também narradora, chamo atenção do leitor para outro aspecto estrutural do romance: a citação de Goethe (aliás este é um livro repleto de referências literárias, desde o romance de menininha, mas ganha forma, sobretudo, as citações de obras da literatura clássica, seja Virgílio, Homero, Dante, Dostoiévski, sim, Elena é uma ávida leitora e está inserida num tempo em que ter um televisor, por exemplo, como passatempo, era luxo para pouquíssimos). De Fausto, a citação constitui-se na epígrafe do romance e é o recorte de uma fala do Senhor sobre a amizade inquietadora, assinalada pela figura do diabo.

E exatamente é essa função que acaba por exercer Lila sobre a vida de Elena. Todos ao seu redor reconhecem o esforço devido, a dedicação com que ela emprega para a realização de tudo, mas, movida por plena insegurança ou espécie de consciência interna (é isso que, em grande parte exerce Lila) tudo precisa passar pelo crivo ou atenção (mesmo que nem sempre atenção) da amiga. Há uma incapacidade de ser só no mundo, mundo aliás que, quanto mais se transforma, mais a coloca distanciada daquilo onde está inserida. Novamente uma clara referência ao texto de Goethe, sabedores que somos de que, o Fausto é aquele movido por certa ganância cega pelo saber logo se distancia, sem perceber, da real existência de seu mundo ou vê-se motivado a querer fazer com que os estão à sombra tenham a mesma visão de mundo que ele.

O livro compõe um painel plurissignificativo da sociedade italiana vista pelo ângulo dos mais simples e revela os costumes, os modos de vida e o pensamento sobre uma Itália profunda que talvez não exista mais. Também não esquece o temário da crítica a um modelo social pautado na violência de toda espécie, denunciando certo aspecto da expressão expansiva do italiano; evidentemente que este olhar crítico só é possível porque Elena Ferrante constrói suas personagens como figuras em constante experimentação sobre a possibilidade de ser-livre. E elege, claro está, com bastante precisão, justamente figuras femininas.

Ao longo da narrativa Lila se assume como o outro de Elena: o que uma dispõe a outra não dispõe, aquilo que uma pensa a outra pensa diferente, o que uma vivencia a outra está por vivenciar ou nunca vivenciará; na construção das duas personagens, a escritora, certamente, estabelece contato de deixar pela trajetória, peças que são importantes para o leitor visualizar sobre um futuro possível designado por essa mocinha perfeita vivida por Elena. E sobre essa natureza espelhar das duas, é o próprio romance que reconhece a certa altura esse lugar (como se também a narrativa exercesse uma reflexão sobre si própria):

“Eu gostava de descobrir nexos daquele tipo, especialmente se diziam respeito a Lila. Traçava como com um esquadro linhas entre momentos e fatos distantes entre si, estabelecia convergências e divergências. Naquele período isso se tornou um exercício cotidiano: tanto eu passara bem em Ischia quanto Lila passara mal na desolação do bairro; tanto eu tinha sofrido ao deixar a ilha quanto ela se sentira cada vez mais feliz. Era como se, por uma magia malévola, a alegria ou a dor de uma implicasse a dor e a alegria da outra. Tive a suspeita de que até no aspecto físico participava dessa gangorra. Em Ischia eu me sentira bonita, e essa impressão não diminuíra após o retorno a Nápoles, ao contrário, durante a assídua maquinação ao lado de Lila para ajudá-la a livrar-se de Marcello houve até momentos em que voltei a me achar mais bonita que ela, e em alguns olhares de Stefano percebi a possibilidade de agradá-lo. Mas agora Lila tinha retomado a dianteira, a satisfação lhe multiplicara a beleza, ao passo que eu, envolvida nos trabalhos da escola, consumida na paixão frustrada por Nino, estava mais uma vez ficando feia. A cor saudável desbotava, as espinhas voltavam. E, numa manhã, surgiu de repente o espectro dos óculos.”

Ainda sobre essa perspectiva metanarrativa, é interessante observar, primeiro nas duas personagens Elena e Lila, depois apenas com a primeira, a relação que desenvolvem com a escrita. Quando criança as duas leem um romance cor de rosa e ficam interessadas em escrever algo do gênero a quatro mãos no futuro e ficarem ricas; depois que Lila se afasta da escola e das leituras, e depois de escrever uma espécie de conto, o sonho ficará maturando apenas na consciência de Elena que, se encanta em saber que Donato Sarratore, um fiscal de trem dedica-se à escrita de um livro de poemas e de artigos para a imprensa, e é reavivado no interesse colocado pelo filho de Sarratore em querer que ela contribua para uma jornal do qual faz parte como editor. Sem querer justapor qualquer especulação autobiográfica entre o encontro da escritora com a escrita e dessa personagem, fique registrado apenas o rico diálogo que a escritora tece ao colocar essa descoberta da atividade na vida de uma personagem fascinada pela possibilidade de questionar o mundo através da palavra, saída, aliás, cada vez mais visível para alguém que avança nos estudos como Elena e se vê cada vez mais distante do mundo simples da plebe e sem muito compreender onde irá aplicar, no seu mundinho limitado, tudo aquilo que aprende na escola.

Com A amiga genial, Elena Ferrante nos devolve o prazer de um ler um romance sem os atropelos dos exercícios forçados das narrativas marcadas por uma natureza de a todo custo ensaiar uma renovação estética; ela nos coloca ante um daqueles clássicos que nos prende livremente pelo simples fato de a urdidura do narrado ser ricamente bem elaborada. Não é que isso faça o romance menor ou menos significativo que outros; ou que exija menos do leitor. Pelo contrário, tal forma coloca o texto ao alcance de um público diverso e da leitura em situação igualmente diversa, mas um enredo assim, sob medida, bem desenhado, deixa o leitor livre para perscrutar cada minúcia que venha se esconder na elaboração das ações. E por isso mesmo é que percebemos alguns deslizes, talvez produzidos entre a revisão, a tradução e novamente a revisão (mas não tenho interesse de opinar sobre isso); o que fica é o desejo pelos próximos títulos e, claro, a sensação de que o bom e velho grande romance não está morto.


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