Os livros únicos de um autor

Harper Lee, a autora do único O sol é para todos

Medo, sofrimento, perfeccionismo e fama formam míticos oásis literários rodeados de silêncio. Se na música um único êxito é chamado one-hit-wonder, na literatura é uma variedade do milagre. Ou epifania como já terão tratado por aqui. E seus autores formam um exclusivo clube de escritores de um único e histórico livro. Tornam-se uma lenda!

Como a que envolve a recente descoberta e publicação de um manuscrito inédito do qual nasceu O sol é para todos, Harper Lee (Go Set a Watchman / Vá, coloque um vigia), nome que mesmo depois do segundo romance (rascunho de um efetivamente publicado) ilumina os membros desse mítico clube. No Brasil, o caso mais célebre será, muito provavelmente, o de Augusto dos Anjos, que se tornou um importante nome para a literatura e com leitores arrebatados e fieis para o seu Eu, ou Euclides da Cunha e Os sertões; na literatura portuguesa, nossa coirmã mais velha, são várias as situações: a mais conhecida delas será Fernando Pessoa com a publicação de Mensagem, embora, na condição aqui assinalada é quase-certo que o seu nome não nos sirva, visto que o poeta terá se tornado reconhecido não pela única obra e sim por aquilo que começou a ser revelado depois de sua morte. Mas, há o mítico Camões, por exemplo, quem só publicou Os lusíadas e fez sua história literária.

Fora da literatura em língua portuguesa é possível citar o dramaturgo espanhol Fernando de Rojas e A celestina, Emily Brontë com O morro dos ventos uivantes, Margaret Mitchell com E o vento levou, Giuseppe Tomasi di Lampedusa com O leopardo ou Franz Kafka que só publicou em vida A metamorfose e outros dois contos em revistas literárias.

Habitam o centro dos círculos do mistério literário onde “o silêncio é sempre uma elipse: quem escreve e depois se cala contém seu talento ou sua capacidade para refugiar-se no não-dito (ao menos publicamente)”, diz Anna Caballé, escritora e professora de Literatura Espanhola da Universidade de Barcelona. O silêncio de um escritor é, em geral, completa “uma ferida aberta e as razões podem ser muitas, mas têm a ver com alguma forma de dor”.Pessoas tímidas, esquivas, fechadas, confusas ou perfeccionistas e um duelo eterno com a vocação literária ou uma forte pulsão pelo não estão representadas nesse clube. 

Algumas só publicaram pelo estímulo de alguém de confiança muito próximo... Não foi o caso de Fernando Pessoa, mas foi de Augusto dos Anjos seu irmão Odilon, Emily Brontë sua irmã Charlotte, Margaret Mitchell seu companheiro, Lampedusa seu primo Lucio Piccolo, Harper Lee seu amigo Truman Capote e Franz Kafka sua companheira Felice Bauer. E, no fim de tudo, escreveram de maneira febril a obra que tinham de escrever.

Alguns decidiram ignorar que a primeira publicação era um princípio de entrada no inferno. Alguns manuscritos foram reprovados por não “atender” a tendência dominante seja pela estrutura, pelo enfoque inovador, muitas vezes à frente de seu tempo. Exemplo claro é o do romance agora publicado de Harper Lee: a versão apresenta uma escritora muito mais direta e combativa politicamente sobre questões caras ao seu país na década de 1950, logo, muito provavelmente por isso, seu editor, tenha lhe convencido de que, daquela maneira, o romance não seria publicado, que o reescrevesse de maneira mais sutil. Convence-lhe, inclusive, de que as questões polêmicas (como as sobre o racismo, por exemplo) devam estar subordinadas ao olhar inocente da criança. Notem, portanto uma coisa: todas as obras únicas que sobreviveram ao tempo é porque traziam consigo essa semente de fazer a história e passar para a história.

Emily Brontë publicou O morro dos ventos uivantes em 1847 com o pseudônimo de Ellis Bell, o mesmo usado numa agenda de poemas escritos em conjunto com suas irmãs. Inicialmente caluniado, o romance foi escrito depois de, no ano anterior, Charlotte impulsionar Emily e Anny a escrever um livro do gênero. Era um passo mais além do costume que tinham de escrever poemas e comentá-los entre si e, claro, tentar uma carreira literária que lhe desse dinheiro e pudessem deixar de trabalhar no que era permitido apenas às mulheres de seu tempo, como serem instrutoras/governantas e professoras. Ángeles Caso, quem escreveu um romance biográfico sobre as irmãs Brontë, diz que “Emily era a mais reticente em publicar esta obra, desconfiava da recepção que poderia ter. Depois das críticas selvagens que recebeu, por não ser entendida, se reafirmou em sua ideia de que iam sujar cada vez mais sua criação e se negou a escrever mais”. Dois anos depois da publicação, e com 30 anos, morreu de tuberculose sem ver um passo sequer da glória literária.

Tomasi di Lampedusa. Nunca viu publicado O leopardo.

Um século depois, o príncipe Lampedusa viveu um episódio muito parecido, exceto pela necessidade econômica (mal, por exemplo, de Augusto dos Anjos que, só teve publicado seu único livro de poemas Eu, graças a um empréstimo sem retorno do irmão). Lampedusa escreveu ao fim de sua vida, já com 58 anos, O leopardo. Venceu os temores da publicação no verão de 1954 quando acompanhou seu primo, o barão Lucio Piccolo de Capo d’Orlando, a uma reunião de escritores em S. Pellegrino Terme. Esse encontro deu-lhe a confiança que necessitava. Dois anos depois, o romance foi rechaçado pelas editoras. Morreu em 23 de julho de 1957 sem ver a obra publicada; isso só se daria no ano seguinte por Giorgio Basani numa das editoras mais importantes da Itália.

Todos esses silêncios e muito mais foram explorados por Enrique Vila-Matas em Bartleby e companhia. A atração por abandonar a escrita depois de um, três, nove ou mais livros. Vem à memória do narrador pela passagem que dedicou a Robert Derain que em Eclipses literários, através da ficção, criou “uma magnífica antologia de contos pertencentes a autores cujo denominador comum é haver escrito um só livro em sua vida e depois haver renunciado à literatura”.

J. D. Salinger é exemplo da síndrome de Bartleby: criou seus labirintos de esquecimento depois de O apanhador no campo de centeio. Raduan Nassar só publicou Menina a caminho, Um copo de cólera e Lavoura arcaica. Mas por que autores como eles não escreveram mais depois da glória? Medo ou o êxito é uma enfermidade do artista? É o enigma da arte que Victor Hugo resolveu dizendo que “a obra-mestra é uma variedade do milagre”. E nessa variedade há claramente dois círculos: o de um livro emblemático que eclipsa todo o restante da obra de um autor e dos livros únicos num gênero não praticado habitualmente pelo escritor.

Raduan Nassar, depois de três livros nenhum mais.

Num segundo círculo estão as obras que no imaginário coletivo a gente identifica quase como sinônimo desse autor: O pequeno príncipe, de Antoine Saint-Exupéry; Doutor Jivago, de Boris Pasternak; A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne; Pedro Páramo, de Juan Rulfo... Não são seus únicos livros, mas logram expressar de uma maneira mais acertada, talvez sublime, que em outros textos, o que queriam dizer, aquilo que aspiravam.

A relação entre uma só obra emblemática e o leitor é tão irresistível que incluiríamos nesse círculo A divina comédia, de Dante e Dom Quixote, de Miguel de Cervantes ou Moby Dick, de Herman Melville e Guerra e paz, de Tolstói, Os miseráveis, de Victor Hugo e O vermelho e o negro, de Stendhal. Na literatura brasileira, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa e Vidas secas, de Graciliano Ramos ou Boca do inferno, de Ana Miranda e O quinze, de Rachel de Queiroz. A razão é que são autores de uma obra mais volumosa, mas uma só é tão vasta, contém tantos mundos que se convertem em livros inesgotáveis e por isso sempre vivos.

O autor de Moby Dick é o mesmo que escreveu um conto em que deu vida à enigmática personagem Bartleby, da qual saíram outros Bartlebys dentro e fora da ficção, “esses seres habitados por uma profunda negação do mundo”, como descreve em seu romance Vila-Matas. “Alguns criadores que embora tenham uma consciência literária muito exigente (ou talvez justamente por isso), não chegam a escrever nunca; ou bem escrevem um ou dois livros e logo renunciam a escrita”.

Um terceiro círculo é para os livros únicos num gênero não habitual do autor. É o lugar da poeta estadunidense Sylvia Plath com seu romance A redoma de vidro; do poeta russo Mikhail Lermontov com Um herói de nosso tempo; do poeta e contista estadunidense Egdar Allan Poe com seu romance A narrativa de Arthur Gordon Pym; do poeta e dramaturgo inglês Oscar Wilde com seu romance O retrato de Dorian Gray...

Talvez Harper Lee tenha deixado em O sol é para todos um resquício para decifrar o silêncio que rodeia esse clube de escritores de livros únicos e históricos: “Os dias tinham vinte e quatro horas, mas davam a impressão de durar mais. Ninguém tinha pressa, pois não havia aonde ir, nada que comprar nem dinheiro para tal, nem nada para ver nos arredores do condado de Maycomb. Mas foi uma época de vago otimismo para algumas pessoas, pois pouco antes o condado tinha tomado conhecimento de que não precisava ter medo de nada, só dele mesmo.”

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* Este texto se apropria da ideia e de passagens de "Secretos de los libros únicos de un autor", de Winston Manrique Sabogal, em El País.


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