Remissão da pena, de Patrick Modiano

Por Pedro Fernandes



Grande parte dos escritores medíocres necessitam de uma grande história para que aquilo que escrevem possa alcançar alguma transcendência. Os grandes escritores, entretanto, podem converter num excelente romance o feito mais trivial, a anedota mais dispensável, mostrando como a excelência não está apenas no que se conta mas na forma de contá-lo.

Patrick Modiano está no segundo grupo; tem a mesma audácia criativa, ouso dizer, do cinema francês em tornar situações banais em profundas histórias. Grande, não no sentido do tamanho, mas da dimensão. Remissão da pena, na edição agora publicada pela Editora Record, por exemplo, tem pouco mais de uma centena de breves páginas. Você pode lê-lo numa sentada. Mas, toca em questões tão singulares de maneira igualmente singular que o leitor, ao modo da leitura do grande romance, sai outro.

A edição original – Remise de peine – data de 1988. Ou seja, a tradução chegou muito tardiamente ao Brasil. E deve ter chegado apenas porque Modiano recebeu em 2014 o Prêmio Nobel da Literatura, se não, padeceria no esquecimento de grande parte do público leitor brasileiro, que só tinha ao alcance outros três títulos do escritor francês. E sua obra é, apesar de composto por narrativas breves e insistentes em alguns temas, é extensa. 

Remissão da pena apesar do título sugerir, não é uma narração sobre o cárcere, um problema de culpabilidade e expiação; para ser sincero, sequer há aqui uma culpa explícita. O sentido será outro. O romance nos faz mergulhar num mundo infantil, um universo um tanto lúdico, de jogos, rotinas escolares, idas ao circo, salpicado de irrupções do mundo adulto, que para as crianças, resulta totalmente incompreensível, um mistério e elas aceitam sem demasiado conflito porque têm uma capacidade que o adulto terá perdido: a da imaginação criativa como resposta para aquilo que não alcançam compreender, isto é, suportam melhor a realidade porque essa distinção crua entre realidade e ficção não está muito definida na infância. O narrador separara recordações tendenciosas, que compõem um mapa muito irregular, uma cartografia vital onde há mais perguntas que respostas e onde as respostas, por vezes, são ficções.

O narrador protagonista e seu irmão, dois meninos, filhos de um pai viajante e de uma mãe atriz de teatro, ambos, portanto, ausentes, são acolhidos por uma curiosa comunidade de personagens excêntricas, amigas da mãe, que, desde seu ponto de vista infantil, são incapazes de classificar; os meninos, enfim, não sabem nada sobre as pessoas com as quais convivem, nem ficamos sabedores se gostam delas não, se são bem tratadas ou não. Também não sabem nada sobre o grupo variado de amigos e visitantes que passam pela casa, o que fazem ou como ganham a vida: negócios escusos, mulheres de vida fácil, carros americanos, idas e vindas noturnas numa casa sem portas, gargalhadas e cochichos secretos; e uma frase “a gangue da rua Lauriston” que, com seu caráter misterioso, torna-se obsessão do protagonista. Mas, o mundo infantil está tomado de situações vagas, criações imaginárias e pouquíssimas certezas: a hora de comer, de ir e vir da escola, a hora de dormir.

O romance é construído assim por uma narrativa que não alcança dizer com certeza o fato. Tudo são reminiscências e o narrador terá, no futuro, o maior interesse de averiguá-las, a fim de atestá-las como verdadeiras ou não e compreender esse movimentado mundo onde vivem durante um ano, mas dele não terá sobrado quase nada e já não é mais possível construir uma unidade de sentido que seja.

A partir das peças soltas, caberá mesmo ao leitor construir, pela via da realidade e da ficção, o que se oculta por detrás desses retalhos de memória que o protagonista, já adulto, lança como redes até o passado, tratando de averiguar o que se passou, quem eram aquelas pessoas e porque desapareceram, onde estão os lugares em que ele e seu irmão viveram nesse estranho ano. Estranho visto deste presente adulto. Do olhar infantil tudo cabia, tudo era admissível, mesmo as incompreensíveis relações, os olhares, os gritos, os homens e as mulheres que entravam e saiam naquela casa.

As recordações do narrador estão centradas numa época de entre-guerras e posteriormente sobre a ocupação, mas ainda assim (e talvez justo por isso) a intenção de reencontrar pessoas ou lugares do passado resultam em fracasso e ele fica por entender algumas coisas, enquanto outras ficam sugeridas, mas nada se afirma. O leitor é mesmo o responsável por modular a história. A capacidade de Modiano nesse romance é o de criação da percepção sobre o mundo a partir do olhar infantil sobre uma época que os próprios adultos tinham de se esconder, criar certas duplicidade para se defender do entorno hostil e às vezes essas duplicidades tocam perigosamente na fronteira entre o bem e o mal. Isto é, a forma do romance finda por incorporar a natureza do próprio tempo que ele evoca. Nada é gratuito aqui; tudo é milimetricamente pensado. 

A narrativa avança entre a memória real das ruas de Paris (o grande fetiche de Modiano: captar uma geografia que se esconde, periférica) e a memória imaginada, ou talvez a fantasia, e por que não as recordações de um menino incapaz de distinguir o que é real e o que imaginário sobre alguns acontecimentos que assiste como mero expectador e que não pode explicá-los; ao fim ele sabe que não pertence a esse mundo, depois de visitar novamente esses cenários possíveis de sua infância.

Se nada mais existe como existia no passado, as personagens e os lugares tais e quais são irrecuperáveis, o certo é que deixam em quem os viveu marcas indeléveis em seu interior. Todas aquelas coisas e também as pessoas hão seguido tocadas interiormente por esses lugares e por esses objetos que desaparecem de nossa vida no primeiro instante de descuido. O que resta só é recuperável pela memória em frangalhos como aquela frase enigmática e  a cigarreira de pele de crocodilo presenteada ao protagonista, precisamente, para que não perda a memória do passado – "o único objeto que testemunhava um período de minha vida do qual eu não podia falar com ninguém e que às vezes me perguntava se realmente tinha vivido".

Patrick Modiano é um escritor de registros diversos, um dos grandes romancistas desse entre-séculos a quem o leitor sempre se renderá em admiração pela sua escrita sobretudo porque sua narrativa é capaz de levar-nos a mundos que mesmo não sendo próximos, logo se tornam familiares. E é precisamente nessa aproximação que Modiano expõe sua maestria, mostrando personagens verossímeis – um vizinho, um conhecido, o próprio leitor – em situações cotidianas; não há fogos de artificio em seus livros senão tênues chamas que, apesar de sua insignificância alumbram com uma suficiência assombrosa; nem predestinação para levantar exclamações de surpresa, mas uma magia silenciosa que revela o quão insólito pode ser, sem nos darmos conta, a realidade. Modiano é, em definitivo, como muitos de suas personagens, um dos nossos.



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