Dois romances de Maria Valéria Rezende: O voo da guará vermelha e Quarenta dias


Por Alfredo Monte



Em 2014, a Alfaguara relançou o primeiro romance de Maria Valéria Rezende, O voo da guará vermelha (2005), uma obra-prima da nossa ficção contemporânea, e publicou seu mais recente exercício no gênero, Quarenta dias, cuja origem está num projeto lançado em 2011, afinal não levado a cabo, “Redescobrindo o Brasil”, meio que nos moldes da série Amores expressos da Companhia das Letras: seriam 14 escritores para 14 capitais brasileiras. Por isso, Maria Valéria (que é da Baixada Santista, em São Paulo, mas há décadas enraizou-se na Paraíba) perambulou durante certo tempo, como sua protagonista e narradora, por Porto Alegre. Felizmente, ela não desistiu de aproveitar a experiência.

I

“Um corpo de homem aguenta mais do que a gente imagina, por vontade de viver, mas a alma é outras coisa, vai morrendo mais depressa quando perde a esperança...” (trecho de O voo da guará vermelha)

A tragédia maior retratada em Vidas secas, de Graciliano Ramos, era o vácuo de linguagem em que se debatiam as personagens, que não tinham sequer o vocabulário para expressar sua angústia e sua miséria. Vácuo de linguagem, “esquecimento do ser”.

É contra a submersão nessa condição desumana e cinzenta que luta o casal protagonista de O voo da guará vermelha, Irene e Rosálio; ela, uma prostituta já num estágio avançado da AIDS (ainda recebendo clientes); ele, um servente de pedreiro analfabeto, inteligente, inato contador de histórias: “… e isso é tudo o que há para se ver, sem conhecer nem nascente nem poente, nem manhã nem tarde, tudo tão aqui, tão perto que a vista logo ali bate e volta, curtinha, sem se poder estirar mais longe, nem para fora nem para dentro, revolteando como passarinho há pouco engaiolado, afogando-se, cegueira. Tudo tão nada que Rosálio nem consegue evocar histórias que o façam saltar para outras vidas, porque seus olhos não encontram cores com que pintá-las…”

Depois de ter gostado muito da coletânea de contos Vasto mundo (2001)1, fiquei alarmado com o título do romance, com seu apelo pitoresco, justamente uma armadilha regionalista evitada com perícia na obra de estreia. E tratando-se um segundo livro, sempre um momento perigoso…
Ao conhecer o encontro desse casal tão despojado de tudo no primeiro capítulo, qualquer prevenção caiu por terra. Fazia tempo que um capítulo inicial não me emocionava tanto, mesmo porque a procura de sobrevivência se faz sobretudo pela aquisição da linguagem e essa experiência pedagógica é que permeia o relacionamento de Rosálio e Irene, ela ensinando-o a ler enquanto ele lhe conta histórias para que ela continue a querer viver, num processo de sedução especialíssimo: “Rosálio está ansioso para ver a mulher e as páginas em que ela o guia e onde as palavras o esperam querendo entregar-se a ele”. Ou ainda: “E ela sabe escrever!, esta mulher sabe ler!, leia mais, leia tudinho, me diga onde está  guará, e agora onde está vermelha e sangue e espinhos e penas. Aqui, ali, acolá, Rosálio corre nas linhas buscando a guará vermelha nos espinheiros das letras até vê-la com clareza e distinguir, luminosos, espinhos, penas e sangue.”

A experiência de vida gera a escrita (Irene escreve as histórias de Rosálio num caderno), que devolve a experiência organizada e transformada, “tudo junto, embaralhado, tramado num pano só, nascendo da mesma cepa, me ensinando essa lição: que a vida mistura tudo e quem quiser separar não vive nada que valha”.



A expressão “experiência pedagógica” pode levar a um equívoco. Não se pense que Maria Valéria Rezende pretenda dar lições explícitas ao leitor e que O voo da guará vermelha é um daquele textos dos quais se tira uma “mensagem” unívoca e edificante. A autora tem um lado utópico gritante, mas a qualidade da sua escrita e sua capacidade de concretizar ficcionalmente essas vidas com suas cores cambiantes é que faz dela um talento a ser acompanhado com muita atenção.

A leitura desse belo romance, assim como a de Vasto mundo, me leva evocar as lições mais profundas de Antonio Candido sobre a vocação da literatura brasileira, que é, no limite, a responsabilidade solidária diante de uma multidão de deserdados. Ou seja, para usar o velho clichê (nem por isso menos necessário), “dar voz aos oprimidos”. E ela o faz sem resvalar nunca no discurso panfletário. Suas personagens tiram as palavras (e portanto suas vidas) do nada, dispondo-as numa articulação narrativa, uma “forma”, uma imagem de nós mesmos (ao contrário do fazendeiro que, numa das belas anedotas de Rosálio-Xerazade, foi perdendo, devido à sua abjeção, sua identidade a ponto de não se reconhecer nos espelhos e ter pavor de encará-los). Como nos ensina o mestre da crítica brasileira, “a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere… toda obra literária pressupõe esta superação do caos.”

E isto vai de encontro à tristeza que é a irrealidade demagógica e aleatória dos projetos governamentais no nosso país, que deixa os Rosálios com fome de palavras e de vida, como nos mostra a emblemática história da professora que, montada uma escola, chega ao povoado, fica um pouco, e depois some: “o povo ficou na mesma, vivendo no realengo, a diferença era aquela casa nova, mais bonita do que qualquer outra do arraial, branquinha, vistosa, a nos lembrar todo dia que ali só havia analfabetos, coisa que a gente antes nem atinava o que era…A gente ficou mais pobre por causa daquela escola. Ninguém pensou em fazer nessa casa moradia e ela lá ficou, vazia…”2

II

“Sabe o nome da rua que ele mora aqui na Vila? Aqui é grande demais pra gente conhecer todo o mundo (…) Aqui mesmo na vizinhança só tem uma pessoa de lá, Ô, Baiana!, guri, tu corre e chama a Baiana pra ver se ela conhece, Pobrezinha dessa mãe!, Filho perdido é coisa que mãe nenhuma aguenta. Vai, piá, vai ver se a Baiana está aí, que ela é de lá, de Fortaleza, é lá de Minas…” (trecho de Quarenta dias)



Para comentar Quarenta dias, convoco algumas figuras femininas, a primeira delas Macabéa, a alagoana de A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, que conta justamente “as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela” (no caso, o Rio de Janeiro).

A paraibana Alice é mais bem-aquinhoada pela sorte material e está para entrar na dita “melhor idade” (“… meia-idade?, já ninguém mais diz isso, meia-idade, fica-se jovem até ser promovida a velha avó, mesmo sem netos, e olhe lá! A idade adulta sumiu, comprimida entre a juventude esticada até o limite do indisfarçável e a tal da melhor idade”). Contudo, é a uma inóspita (para “brasileirinhas” feito ela, no melhor estilo do racismo que nunca ninguém acha que existe por aqui) Porto Alegre que ela chega para cumprir a sina de “avó profissional”, após uma feroz conspiração familiar orquestrada pela filha, Norinha, a qual, tendo feito a mãe desenraizar-se tão traumaticamente, não hesita em partir para a Europa para uma temporada acadêmica. Afinal, a mãe já viveu o que tinha de viver…

Para escrever sua história, de como fugiu sorrateiramente daquele apartamento-arapuca preparado por Norinha e de como, por 40 dias, vagou por uma cidade toda feita contra ela, palmilhando favelas, bibocas, prontos-socorros, rodoviárias, subúrbios e lugares de pouso para sem-teto, na busca do paradeiro do desaparecido Cícero Araújo, peão de obra, filho de uma conterrânea, Alice se vale de um antigo caderno espiral com uma Barbie na capa. Sim, ela, o ícone da domesticação fetichista do que se pretende como “o feminino”, incluindo comportamentos e uma aparência física que só pode existir por meio de manipulação cirúrgica.

É nessa Barbie sempre passiva que ela descarrega sua revolta, contando suas andanças, das quais traz “detritos” (que compõem a estrutura visual do livro: panfletos, comandas, folhetos, e citações de outros autores) e a memória convulsa de “toda essa gente que tomou conta de mim e grita e anda pra lá e pra cá e chora e xinga e gargalha e geme e mija e sorri e caga e fede e canta e arenga e escarra e fala e fode e fala e vende e fala e sangra e se vende e sonha e morre e ressuscita sem parar”.

Virou moda um escritor se alojar por curto tempo numa cidade que lhe é alheia e produzir um livro a partir da experiência fugaz. Ou então, como em Budapeste (2003), de Chico Buarque, o nome da cidade (que acaba sendo um lugar-nenhum) servir como mote de uma trama que enfatiza uma “poética da pós-modernidade”, por um lado, até angustiantemente fantasmagórica; por outro, sofisticada e cosmopolita. Nada mais distante do que os desígnios de Maria Valéria Rezende no seu contundente romance. Nele, a sensação de “não lugar”, transmitida em vários pontos do relato, mostra é a dinâmica da exclusão, a urbanização segregacionista que faz com que, sob o anseio de um perfil Dubai,  onipresente nas metrópoles, aquele que porventura se extravie, encontre brechas inquietantes, realidades alternativas, como aquelas que Alice encontra na sua peregrinação ziguezagueante por conta de Cícero Araújo. Fendas (“rachaduras na superfície da cidade”) por onde é fácil desaparecer para sempre, tornar-se invisível e não-cidadão…

Cercada pelo “país das maravilhas cruéis”, Alice se reporta amiúde à sua xará, a menina inglesa criada por Lewis Carroll, também antípoda a ela quanto à idade (como a citada Macabéa), a jovem sempre às turras com as regras e a lógica do mundo adulto, que resultam arbitrárias e grotescas3. Ingressando na “melhor idade”, da Alice paraibana se exige também que siga determinadas regras de conduta e assimilação, e ao se largar pela inóspita Porto Alegre da superfície, embarafustando-se pelos seus desvãos, ela descobre o que é ser uma figura desconstruída de mulher, “quase um monte de trapos, enrolada num trapo há muito tinha deixado de ser de luxo… Por não suportar o olhar do dono do bar que se tornava hostil, saí e retomei meus caminhos que levavam a tantos lugares e a lugar nenhum”.

Mas no país das maravilhas cruéis, da gentrificação, há um estreito espaço para um Brasil profundo, para um povo brasileiro que não se ajustou ao padrão globalizado, e especialmente para a compaixão, no sentido que aprendemos com a ficção da grande autora de O voo da guará vermelha: não apenas uma comiseração mútua, e sim o envolvimento e engajamento solidário entre as pessoas para além da degradação que a realidade monolítica que o capitalismo vem tentando construir e o cotidiano brutalizado podem oferecer.

Pois, como espero ter conseguido demonstrar (com a ajuda de Macabéa, de Barbie, das Alices), Quarenta dias é uma tremenda e necessária reflexão ficcional sobre o Brasil de hoje, que já foi o país do futuro, que está ameaçando se tornar um país xing ling das maravilhas, porém ainda tem suas Vilas Degoladas (favela onde supostamente vivia Cícero Araújo) e seus “brasileirinhos” incômodos e renitentes.

Notas:
1 Que será reeditado em 2015, retrabalhado como romance, naquele território movediço ao qual pertence o  já referido Vidas Secas como também Winesburg, Ohio, de Sherwood Anderson, e  The Hamlet- O Povoado, de William Faulkner, que podem ser tomados como uma reunião de textos independentes e como romances “desmontáveis”.

2 Em 2012, a autora fez uma linda versão juvenil do romance, intitulada Ouro dentro da cabeça (Autêntica), numa tessitura narrativa (e gráfica) muito marcada pela oralidade.

3 Um dos motes mais vivazes do texto é a referência aos “tamanhos” assumidos pelas duas Alices. Por exemplo: “Quando Umberto [o genro gaúcho] embicou o carro num portão, diante de um prédio qualquer daquela cidade nenhuma, acionou um controle remoto e entrou, parando ao lado de uma guarita, encolhi-me ainda mais, Alice diminuindo, diminuindo…”; em outra passagem: “… acordei logo cedo, disposta a deixar pra lá o ressentimento, ser realista, encarar as coisas como eram agora, como gente grande, voltar ao meu tamanho normal…”

Mas há inúmeras outras analogias tecidas em torno das aventuras das xarás. Deixo ao leitor o prazer de descobri-las, identificá-las.



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