O pintassilgo, de Donna Tartt


Por Pedro Fernandes



Até o presente, Donna Tartt parece que não tem dado muita atenção para o acumulado da fama: desde o seu primeiro romance, A história secreta, publicado quando ainda estava na faculdade, que a escritora estadunidense tem sido fenômeno ao redor do mundo. Mas, não é ela também, ao que parece, uma autora interessada na forma Best-Seller. O romance seguinte, O amigo de infância, valeu-lhe o Prêmio Pulitzer de Literatura. Mais tarde, em 2014, a revista Time a elegeu uma entre as cem pessoas mais influentes do mundo. Com O pintassilgo, Donna redige o terceiro título de sua carreira literária. Cada obra se distancia pelo menos uma década uma da outra.

O romance ora apresentado recebe esse título pela relação que mantém com uma minúscula, mas enigmática e significativa tela homônima do pintor holandês Carel Fabritius. Pintada em 1654, a tela apresenta no que parece ser um suporte para pássaros, um pintassilgo amarrado pelo pé. Trata-se de uma peça cuja função não se restringe a compor a mera ilustração para capa do livro – tornada padrão em todas as edições já publicadas – nem servir de título para o romance. Ela se mostra como motivo da narrativa: Fabritius morreu vítima de uma explosão em Delft (cidade perto de Haia) pouco tempo depois de pintar a tela quando só tinha ainda 32 anos. É ainda elemento da narrativa, linha às vezes invisível pela qual se compõe o enredo, e, por que não, caracterizador da personagem central da obra.

Expliquemos: O pintassilgo é um romance que acompanha uma criança abandonada pelo pai e pelos avós, cuidada pela mãe até o dia quando os dois abrigando-se da chuva numa exposição de arte holandesa no Museu Metropolitan são separados por um atentado terrorista. O que se passa depois desse trágico acontecimento está dito na expressão da tela de Fabritius; o romance é um olhar angustiado sobre a vida, sobre está preso a uma existência com a qual ninguém foi possível de sonhar. Sim, porque sempre sonhamos com uma extensa lista de sucessos e ainda que na sua trajetória imprima-se certo sacrifício, ansiamos prevalecer um retorno positivo.

A posição ocupada pelo olhar do narrador, o próprio Theo Decker situado em Amsterdã a lembrar toda sua vida desde essa ocasião em Nova York, também se justifica pelo olhar atento, do alto, ocupada pela personagem da tela holandesa. Tudo é registrado como uma peça refinada de detalhes. Por vezes, tomado pela caudal desenvoltura da narrativa, somos puxados pelo braço para nos recolocarmos diante das grandes narrativas do auge do realismo. Não será demais dizer que nessas ocasiões sequer desconfiamos estar diante de um romance contemporâneo sempre tão ansioso pelo tratamento dado à forma. É claro que o leitor ficará angustiado com tanto detalhismo, com o prolongamento às vezes chato de determinadas situações; por certo ficará entediado com situações que diante das quais sequer temos motivo de apresentar alguma impressão sobre o acontecido, como se a matéria narrada um tanto verborrágica precisasse de passar por prensas de enxugar tais como as utilizadas por romancistas contemporâneos a Tartt.

Mas desse modo O pintassilgo se presta a levantar uma série de questões: dar outro folego à forma necessariamente breve com que os acontecimentos nos chegam a título de imprimir no leitor esse sentimento infantil do tédio, do estar perdido diante de um mundo que desmorona por completo, de um mundo cuja realidade parte-se e obriga precocemente os sujeitos a tomarem outro rumo, ainda que não se saiba muito que fazer a respeito, ou mesmo que a superproteção do Estado figure mais como um tratamento distanciado da capacidade de reconduzir anima aos indivíduos.

Outra: não é, necessariamente, ou tão somente, o contexto o que determina ou beneficia a constituição da forma. Há uma série de outras questões, seja a decisão do próprio escritor em fazer dessa e não de outra maneira o andamento da narração. No caso aqui, talvez Donna Tartt seja tomada por um perfeccionismo ou o lustre das esferas narrativas, que delas não escape uma só ponta que a denuncie contraditória na construção da relação entre a realidade interna e externa ao contado.

Talvez queira a escritora dizer que, antes da forma, o mais importante é a arte de contar histórias, de fazê-las parecer reais. Nesse caso, o tédio impresso pelo andamento das ações nos coloca diante de outra forma de olhar as coisas e os acontecimentos: a do adulto sozinho no mundo, que, por ter assumido as responsabilidades adultas cedo demais, ainda vergasta um olhar mais acurado sobre o que lhe cerca e busca ter outra impressão sobre o movimento do tempo. O que soa artificial nesse processo é essa posição descritivista centrada, por vezes, num detalhismo distante da real condição memorialística de qualquer narrador.

Donna Tartt assume, dessa maneira, uma dupla posição: mostrar-se uma escritora capaz de domar a forma do grande romance, interesse tornado quase vulgar numa era em que a narrativa está reduzida apenas ao como contar uma história e, depois, propor que neste tempo, o tempo que tem sido o de valorização da multiplicidade das expressões artísticas, ainda pode haver espaço para narrativas de grande fôlego. Não é suficiente a invenção a qualquer custo. O que é suficiente é dizer bem a história que precisa ser contada.

O pintassilgo está a 12 anos de distância do último título da autora. De modo que tem seu ponto de partida determinado por um tema caro à literatura estadunidense do pós-11 de setembro: os atentados terroristas desse dia serviram não apenas à mudança de rumo da política, da economia e do indivíduo daquele país; introduziram no campo das experiências artísticas outras formas e outros temas. Aqui, o drama é ainda mais acentuado devido o ângulo pelo qual é olhado: o de uma criança de 13 anos de idade. Embora o atentado seja outro, não há como fugir do acontecimento histórico. 

Assim, mais que um romance interessado na trajetória de um órfão do terror, Donna Tartt experimenta tratar, a partir do terrorismo como fatalidade produzida pelos laços da incapacidade do homem em conviver com o outro, temas como a fragilidade e a limitação da vida, o acaso como fator desestruturante das relações contemporâneas já não mais apoiadas pelas grandes margens da família, mas de um núcleo afetivo muito reduzido. Circulam os temas da perda, da sobrevivência em tempos difíceis, do estilhaçamento das relações humanas, do impacto do outro sobre a vida da qual nos julgamos dono dela.

Trata-se de um texto que volta ao ponto do chamado romance de formação. Todo o itinerário da personagem – desde a convivência adotiva na casa dos Barbour, passando pela partida igualmente abrupta para o interior dos Estados Unidos ao lado do pai, retornado quase que do acaso e interessado na vida do filho, pela amizade construída por Theo com Boris e seu passeio pelo submundo das margens de Las Vegas, e o retorno da personagem a cidade onde viveu desde sempre, Nova York – serve de aperfeiçoamento para dizer sobre a construção de um tipo assemelhado, mas coloquem muitas restrições, ao do malandro brasileiro; a relação aqui só é dada pela capacidade que essa personagem tem de circular entre a classe alta e as margens.

Exaltado pela crítica ao redor do mundo como um grande romance, é preciso ter pelo julgamento um limite e cautela. O fato de se diferenciar daquilo que é comum à cena literária contemporânea ou mesmo ser, ao beber de outra estética já tida como retrô, um texto bem construído não podem servir de determinações definitivas para se julgar uma obra como tal. Por isso, colocamos entre os livros necessários à leitura, mas sem a obrigação de ser esta uma leitura inadiável. Inadiável mesmo talvez seja ir para leituras de escritos como os de Charles Dickens. Dizem os leitores mais atentos que a base de O pintassilgo vem de clássicos como Grandes esperanças; talvez por aqui, seja um bom começo antes de chegar a Donna Tartt.


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