Na dimensão do avesso: personagens de Lewis Carroll


Por Alfredo Monte


Alice. Ilustração do próprio Lewis Carroll para a primeira versão de Alice no país das maravilhas. Biblioteca Britânica.


1. ALICE

“Meu querido Charles,

Você pode confiar em que não esquecerei  da sua encomenda. Assim que chegar a Leeds, começarei a gritar, no meio da rua ´Ferrageiros´, `Ferrageiros´. Seiscentos homens acorrerão de uma loja num instante, voando de todas as direções, os sinos tocarão, a polícia será convocada, a cidade será incendiada. Eu HEI de conseguir uma lima e uma chave de fenda e uma argola, e se essas coisas não forem trazidas imediatamente, em quarenta segundos, não deixarei pedra sobre pedra em toda a cidade de Leeds, e a única coisa que sobreviverá será um gatinho, porque não sei se terei tempo de matá-lo. Então haverá gritos e arrancar de cabelos! Porcos e bebês, camelos e borboletas, rolando juntos na sarjeta, mulheres velhas tentando escapar pelas chaminés e vacas correndo atrás delas, patos escondendo-se em xícaras de café e gansos gordos espremendo-se em estojos de lápis. Finalmente, o prefeito será encontrado em um prato de sopa coberto com creme e será revestido de amêndoas para ficar parecido com um pão de ló e assim tentar escapar da terrível destruição da cidade (…) Eles finalmente trazem as coisas que pedi, então eu poupo a cidade e mando em cinquenta vagões, sob a escolta de dez mil soldados, uma lima, uma chave de fenda e uma argola de presente para Charles Lutwidge Dodgson”.

Como muitos adultos, sou fascinado por Alice no País das Maravilhas & Através do espelho e o que Alice encontrou lá, de Lewis Carroll (1832-1898), e mais de uma vez fiquei desconcertado com o volume de crueldade, desfaçatez, arrogância, perversidade, estupidez e violência que avulta na aparentemente inofensiva história da menina que vê um coelho tirando um relógio do bolso do colete, vai atrás dele, entra numa toca e a partir daí vive diversas aventuras num País das Maravilhas que de maravilhoso nada tem a não ser o nonsense do autor, seus jogos com as palavras, a lógica formal e seus silogismos, e as convenções sociais. E tudo isso se radicaliza mais ainda na aventura subsequente, quando, após admoestar, ameaçar e sacudir a filhotinha da sua gata de estimação, a menina “passa” para o outro lado do espelho.

Só para dar um exemplo memorável,  no capítulo 7 (no País do Espelho, onde não por acaso há uma duplicação incômoda de rainhas, reis, cavaleiros, mensageiros etc.):  o Rei Branco, que enviara sabe-se lá para onde  “quatro mil duzentos e sete” cavaleiros, ordena a Alice:

“Dê uma olhada na estrada e veja se pode avistar algum deles.

– Ninguém está vindo pela estrada – disse Alice.

– Ah, só queria ter olhos assim – observou o Rei em tom rabugento– Capazes de ver Ninguém! E a tal distância!  Ora, o máximo que consigo é ver alguém de verdade.”

Mais adiante, quando chega um dos dois Mensageiros do Rei (ao qual Alice atribui “maneiras meio esquisitas” e o Rei replica: “Esquisitas? Não. Ele é um mensageiro  anglo-saxão, e aquelas são maneiras anglo-saxônicas”), o Rei pergunta a ele:

“– Por quem você passou pela estrada?

– Ninguém – respondeu o Mensageiro.

– Certo, certo – disse o Rei – Esta jovem aqui também o viu…”

O trecho cuja citação serviu de abertura a este texto talvez ajude a entender a origem desse universo peculiaríssimo. Ele pode ser encontrado na página 382 da edição brasileira1 da biografia de Carroll escrita por Morton N. Cohen. Trata-se de uma carta escrita pelo pai de Charles Dodgson (verdadeiro nome de Carroll), respondendo a um pedido do filho de oito anos.

Nela,  encontramos tudo: o nonsense, a imaginação exuberante, os delírios de grandeza e a violência desmedida. Pasmem: é a carta de um austero e repressivo reverendo anglicano, atado à mais estrita moral vitoriana que se possa imaginar. No entanto, se um pai jamais teve influência no estilo de um filho, nem que seja involuntariamente, eis aí a prova. A carta do reverendo Dodgson podia perfeitamente fazer parte do mundo de Alice (tanto é que, e Cohen o registra escrupulosamente, temos aí a referência extravagante a “porcos e bebês” rolando juntos na sarjeta, e em Alice um bebê se transforma em porco, assumindo a forma que as suas feições já propiciam).


Uma das edições mais recentes no Brasil de Alice no país das maravilhas. 


Retomando a questão da fascinação adulta, pelo menos na minha geração (os nascidos nos anos 1960) a referência de tradução para os dois livros das Aventuras de Alice é a de Sebastião Uchoa Leite (Summus Editorial, 1980), que tirou Lewis Carroll das garras do mundo Disney e das adaptações e condensações infanto-juvenis. E que também aproveitou as versões extraordinárias de Augusto de Campos para alguns textos carrollianos e do poema Jabberwocky, que faz parte de Através do espelho e o que Alice encontrou lá. No Brasil, será difícil algo que supere Jaguadarte:

“Era briluz. As lesmolisas touvas
       Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
     E os momirratos davam grilvos.

Foge do Jaguadarte, o que não morre!
       Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Felfel, meu filho, e corre
     Do frumioso Babassurra!

Ele arrancou uma espada vorpal
    E foi atrás do inimigo do Homundo
Na árvore Tamtam ele afinal
     Parou um dia sonilundo.

E enquanto estava em assustada sesta
      Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta
     E borbulia um riso louco!

Um, dois! Um, dois! Sua espada mavorta
      Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!
Cabeça fera, corta e, fera morta,
     Ei-lo que volta galunfante.

Pois então tu mataste o Jaguadarte!
      Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh dia fremular! Bravooh! Bravarte!
    Ele se ria jubileu…” etc. etc.2

Nessa outra dimensão da realidade, Alice ora cresce desmesuradamente, ora diminui de forma aflitiva (“dessa vez, pode ser que eu suma de uma vez, como uma vela. E o que seria eu então?”). Isso gera dúvidas quanto à sua própria identidade, como no divertidíssimo diálogo com a pedante Lagarta, que pergunta quem é ela: “Eu neste momento  não sei muito bem, minha senhora. Pelo menos, quando acordei hoje de manhã, eu sabia quem era eu, mas acho que depois mudei várias vezes… Eu acho que não consigo me explicar, minha senhora, pois não sou mais eu mesma…”

Alice fica confusa e furiosa com todas as suas mudanças, mas não exatamente angustiada, não há uma ameaça à sua identidade. Não estamos  no mundo da Metamorfose de Kafka… ainda. O que está em jogo, aqui, é a disponibilidade infinita da criança, antes de ser domesticada e deformada pelas regras absurdas e impositivas do mundo adulto. Muito do absurdo delicioso de Alice no País das Maravilhas reside no fato de que os seres que a heroína encontra tentam impingir-lhe (e se ela retruca e questiona, consideram-na “sem modos”) ou considerações lógicas que no fundo são idiotas e rebarbativas, ou regras que não têm sentido, que “têm de ser assim”, sem fundamentação alguma.

Nada demonstra melhor isso (se as cenas anteriores, como a conversa com a Lagarta, a cena com a Duquesa, a Cozinheira e o Bebê, ou a hora do chá interminável com o Chapeleiro Maluco e a Lebre Aloprada, não o tiverem feito; de qualquer forma, elas inscrevem-se indelevelmente na nossa imaginação, mesmo que não procuremos “explicá-las”) do que o baralho de cartas que forma uma Corte (é preciso lembrar que Carroll escrevia num país onde até hoje existe uma realeza). E há coisa mais arbitrária do que as regras de um jogo de cartas?

Durante o julgamento do Valete (com a ameaça onipresente da Rainha de Copas de sempre mandar cortar a cabeça de alguém, promulgando a sentença, antes do veredicto, e aí sim estamos já no mundo kafkiano), o Rei quer expulsar  Alice citando a regra 42 do regulamento. Ela, a sem modos, retruca: “Pois bem, eu não vou sair daqui  de jeito nenhum! E além do mais, não existe essa tal regra, você acaba de inventar isso agora mesmo”. O rei replica, como se  bastasse apenas dizer isso: “É a mais antiga regra do Livro”. Alice, impávida, mostra que tudo que é sólido pode se desmanchar no ar e que as certezas do mundo adulto podem sempre ser voltadas contra ele: “Nesse caso, ela deveria ser a de Número Um”.

Lewis Carroll então com 23 anos (detalhe).

Charles Dodgson não se manteve com oito anos. No entanto, já adulto, diácono (que é uma espécie de condição eclesiástico-leiga ou leigo-eclesiástica preliminar à ordenação como clérigo anglicano), professor de matemática e lógica em Oxford, ele não se desligou da infância, pelo menos nos seus gostos eróticos. Era um pedófilo, ainda que não se tenha notícia de qualquer abuso cometido contra uma menina (a sua preferência). E ele fotografou dezenas, com a autorização dos pais, cultivou “amizades” com ela. A inspiradora de Alice, por exemplo, era uma das filhas do reitor, e  num passeio de barco com um amigo, ela e suas duas irmãs, é que surgiram as primeiras aventuras da Alice ficcional.

Muito caprichoso, principalmente no tocante aos presentes para suas “amiguinhas”,  Dodgson (ainda não Carroll) escreveu As aventuras de Alice no Subterrâneo e confeccionou e ilustrou um livro para a Alice real. Em 1865, esse livro foi aumentado e transformado em Alice no País das Maravilhas (a continuação no País dos Espelhos, apareceu em 1871).

Durante anos, ele cultivou a amizade com a família do reitor até que as relações “esfriaram” por razões não muito bem esclarecidas, mas é evidente que têm a ver com a estranheza de tudo aquilo.  Morton N. Cohen tem Alice Liddell como o grande amor da vida de Charles Dodgson e pensa que ele nunca se recuperou da decepção de não ter casado com ela.  E é bem severo na sua biografia com a frieza e volubilidade da família Liddell como um todo, especialmente da mãe de Alice.

De qualquer forma, após a “amizade” enquanto criança e pré-adolescente com Dodgson e uma paixão compartilhada, mas que não deu em nada com Leopold, um dos filhos da rainha Vitória, Alice se casou com Reginald Hargraeves, tornando-se uma mulher intolerante com a criadagem, muito convencional, enfim, o epítome da “dama” vitoriana. Dos seus três filhos, dois morreram na Primeira Guerra. Em 1926, morreu  o marido, e o filho que sobrou, Caryl (Cohen faz especulações com o nome dele, por conta da associação Caryl-Carroll)  aos poucos leva o patrimônio da família à quase bancarrota, por falta de sorte, pelas condições da época, enfim, por uma série de circunstâncias e vicissitudes pessoais e históricas.  Cohen  escreve então (pág. 598): “Alice  correu para o resgate. Ela guardara em seu escritório todas aquelas magníficas primeiras edições, com suas dedicatórias especiais, além de vários presentes que ganhara de Charles, entre os quais o famoso caderno com capa de couro verde contendo o primeiro manuscrito  da história de Alice. Ela decidiu vendê-lo. Lewis Carroll já era  um nome mundialmente famoso, e seus manuscritos e primeiras edições autografadas eram tesouros caçados por colecionadores ricos de todos os cantos do mundo. Alice não teve escrúpulos…”

Em 1932, ela se deixa envolver pelas homenagens ao centenário de Dodgson/Carroll e chega a viajar para os EUA em turnê para diversos eventos. Só para depois afirmar (num desabafo ao filho) que estava cansada  de ser Alice no País das Maravilhas: “Isso soa ingrato? Que seja – pois  o fato é que estou cansada” (pág. 600).

O que me leva de volta à Alice ficcional e seu desejo de ser uma “rainha” em Através do Espelho, um lampejo muito interessante da intuição de Charles Dodgson do “eu” real da sua “amiguinha”. No capítulo 9, ela realiza sua aspiração: “Ah, que maravilha. Nunca pensei  que fosse ser Rainha tão cedo… e para falar a verdade, Vossa Majestade – disse em tom muito grave (ela adorava fingir que estava repreendendo a si mesma) – não fica bem estar refestelada na grama desse jeito! As Rainhas têm que ter dignidade!”

Edição brasileira mais recente de Sílvia e Bruno.


2. SÍLVIA E BRUNO

“– Mas você não deseja ser sempre feliz, não é Bruno?

 – Sempre, não. Quando eu fico muito feliz, eu fico também querendo ser um pouco infeliz. Eu falo isso pra Sílvia e ela me dá uma lição pra fazer. Então fico de novo bem.”3

Além da famosa dupla de livros sobre Alice, Lewis Carroll procurou renovar a literatura infantil com o menos conhecido par de romances, assumidamente experimentais, protagonizados pelos irmãos Sílvia e Bruno. Aqui no Brasil, dos 50 episódios (que consumiram 16 anos de trabalho e originalmente representam umas 700 páginas), 24 foram traduzidos em Algumas Aventuras de Sílvia e Bruno (Iluminuras, 1997).

Eles são os espertos e vivazes filhos do Governador do País do Outro Lado, mundo paralelo ao nosso. Um dia, o pai precisa viajar (não sabemos por que) por muito tempo e deixa o Estado nas mãos do irmão, que, através de uma vil artimanha, usurpa o poder. Sílvia e Bruno, maltratados pelos tios e pelo primo (que se torna o herdeiro), fogem, e, no País das Fadas, metamorfoseiam-se em fada e elfo.

Em nossa realidade, quem consegue vê-los é o Narrador, um homem que está entrando na velhice, mas que consegue ficar “encantado”, ou seja, numa espécie de transe o qual, além de permitir que conviva com as crianças-fadas, o leva a testemunhar (invisível) as peripécias no País do Outro Lado (ele só não tem acesso ao País das Fadas). Vez em quando, Sílvia e Bruno também participam de episódios na nossa dimensão, aparentemente como crianças “normais” (só que especialmente “encantadoras”).

O que torna um tanto estranhos os primeiros capítulos (depois o leitor se acostuma) é que o autor mistura as dimensões e de uma frase para outra passamos de um mundo para o outro, sem aviso. Ele contempla Lady Muriel, a heroína romântica da nossa dimensão, num vagão de trem, e sobreposto à sua face descortina o rosto de Sílvia no Outro Lado.

Depois que se “entra no jogo”, a estrutura narrativa não apresenta mais dificuldades, embora eu tenha minhas dúvidas se alguma criança conseguirá entendê-la ou se “encantar” com ela (ao que parece, na época de Carroll, episódios isolados conseguiam essa proeza: tanto que o romance nasceu de um capítulo, “A Vingança de Bruno”, que fez muito sucesso).

Há muitos detalhes apaixonantes, a trama geral é deliciosa (há também a complicação romântica envolvendo Muriel e o amigo do narrador, Arthur Forester, apaixonado por ela e sem coragem de se declarar, o que a leva para os braços do primo, Eric), mas há muita coisa extravagante, no mau sentido, e, ao fim e ao cabo, enfadonha.

Como acontece no Wilhelm Meister, de Goethe, e em Ada ou Ardor, de Nabokov, a criatividade, a exuberância da imaginação, a riqueza episódica ficam comprometidas pelas idiossincrasias do autor, e por um certo artificialismo de salão, que  decerto prejudica a leitura, durante a qual oscilamos entre a admiração e a exasperação.

Carroll já radicalizara suas peculiaridades em Através do Espelho, o qual, concordamos todos, é muito mais “estranho” do que o primeiro Alice. Em Sílvia e Bruno, querendo coroar a obra da sua vida, ele enfatizou por demais suas obsessões, suas próprias questiúnculas, de tal forma que todas as discussões metafísico-científicas envolvendo tempo, espaço, medidas, princípios lógicos, usos e funções dos nomes, acabam parecendo as divagações monomaníacas de alguém muito neurótico e esquisito, e certos episódios “infantis” (como o do leão, a ovelha e as raposinhas) acabam sendo de um tremendo mau gosto. 

Parece que ele levou ao extremo e se intoxicou com a percepção do que acontecera com Através do Espelho, tal como Roger W. Holmes descreve muito bem: “Essas regiões estão repletas de problemas e da parafernália da lógica e da metafísica, da teoria do conhecimento e da ética. Encontramos aqui um tratamento extremamente imaginativo dos princípios lógicos,  dos usos e significados das palavras, das funções dos nomes, das perplexidades ligadas ao tempo e ao espaço, do problema da identidade pessoal, do status da substância em relação a suas qualidades, o problema da mente-corpo…”

A seleção brasileira, otimamente traduzida, acaba ilustrando os acertos e os perigos que envolvem a originalidade. Até ela pode ser demasiada e se transformar em incomunicabilidade. O filho do reverendo Dodgson, adulto, se refugiara de vez na dimensão do avesso, em que não se deixaria pedra sobre pedra em toda a cidade de Leeds, então haverá gritos e arrancar de cabelos! Porcos e bebês, camelos e borboletas, rolando juntos na sarjeta, mulheres velhas tentando escapar pelas chaminés e vacas correndo atrás delas, patos escondendo-se em xícaras de café e gansos gordos espremendo-se em estojos de lápis. Finalmente, o prefeito será encontrado em um prato de sopa coberto com creme e será revestido de amêndoas para ficar parecido com um pão de ló e assim tentar escapar da terrível destruição da cidade...

Notas:

1 Traduzida por Raffaella de Filippis e lançada pela Record.

2 Nos últimos anos, a Zahar publicou a versão brasileira da edição enciclopédica de Martin Gardner das duas obras, e a Cosac Naify uma esplêndida versão de Nicolau Sevcenko (infelizmente com umas ilustrações medonhas de Luiz Zerbini) de Alice no País das Maravilhas.

3 Lewis Carroll, Sílvia e Bruno, em tradução de Sérgio Medeiros.



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