Requiem – Uma alucinação, de Antonio Tabucchi

Por Pedro Belo Clara




Se somente fosse tomado em consideração o apelido deste autor, cuja obra aqui apresento, por certo que o leitor, com justa razão, não o consideraria de origem portuguesa. Como tal, seria adequado concluir que este trabalho que assino representa uma inocente “batota” ou uma aceitável traição ao propósito primordial desta coluna quinzenal, que se propôs, desde a sua fundação, a somente apresentar obras de autores oriundos de terras lusitanas. Permita-me, no entanto, que esclareça o tema um pouco melhor, uma vez que o mesmo não é tão linear como se poderá assumir.

De facto, Antonio Tabucchi é um autor italiano nascido na cidade de Pisa durante a década de quarenta. Acontece que Portugal foi uma das grandes paixões que pintaram a vida de Tabucchi, ao ponto de, em 2004, requerer a nacionalidade portuguesa. Por isso, creio ser inteiramente justo que um dos seus mais emblemáticos trabalhos seja incluído do rol das habituais análises propostas por esta coluna. Embora não seja português de origem, é certo que Tabucchi terá sido, ainda em vida, um português de coração. Casou e constituiu família em Portugal, país onde passou grande parte do seu tempo, pelo que não há como não o considerar, ainda que em ínfima parte, uma alma assumidamente lusitana.

Além dessas curiosidades, representativas do amor que Tabucchi reservava à sua “pátria adoptiva”, a própria obra, cuja leitura recomendo, é um hino singelo ao país e às gentes que tão bem o acolheram. Encontra-se, inclusive, no original totalmente escrita em português e a própria narrativa desenrola-se, em grande parte, nas ruas da capital. O próprio autor admitiu, sem reservas, a intenção subjacente: "este livro (Requiem – Uma alucinação) é uma homenagem a um país que adoptei e que também me adoptou, a uma gente que gostou de mim e de quem eu também gostei".

Este professor universitário, que explorou as áreas do teatro, do conto e do ensaio, contando com diversas adaptações ao cinema (Sostiene Pereira, de sua autoria, foi inclusive um dos derradeiros filmes protagonizado por Marcello Mastroianni), começou por cultivar o seu amor pela pátria de Camões quando entrou em contacto com a obra de Fernando Pessoa. Fascinado pelo poeta, chegou mesmo a frequentar aulas de português para o poder compreender na máxima das amplitudes possíveis. Mais tarde, Tabucchi e sua mulher, portuguesa, seriam responsáveis pela tradução para o italiano de grande parte do trabalho assinado por Pessoa, contribuindo grandemente para a divulgação da sua obra naquele país.

Requiem – Uma alucinação é, assim, um livro que não só homenageia Portugal e suas gentes como também a própria língua da nação que tão cara foi a Antonio Tabucchi. Obviamente, a sua essência não se limita apenas a tal característica. Na obra, a realidade e a fantasia tocam-se e confundem-se, acabando por se diluir uma na outra. O “eu” da narrativa, onde amiúde se reflecte o próprio autor do texto, realiza uma viagem de um dia por Lisboa, tórrida e deserta em finais de Julho, cruzando-se tanto com personagens de índole real e palpável como com fantasmas (não necessariamente opressores) oriundos de um passado distante. Assim, o “eu”, além da peregrinação deambulatória que empreende, realiza, em pano de fundo, uma certa expiação: o murmúrio da derradeira oração e das derradeiras palavras que aos seus mortos, por tão distintas razões, ficaram por dizer. Assim se compreende a escolha do título que encabeça a obra: “requiem”, isto é, um elogio fúnebre que procura efectivar a despedida final, o saldar do que pendente permaneceu junto dos idos relacionamentos. É, por isso, natural o enfoque realizado na relação do “eu” com as diferentes personagens, ora vivas ora mortas, que no caminho se lhe cruzam. Inclusive, as mesmas encontram-se listadas numa espécie de preâmbulo que naturalmente antecede o início da narrativa.

Entre fantasia e realidade o “eu” vagueia e nele, como antes se referiu, o autor frequentemente se reflecte. Certos encontros, ainda que possam ser baseados em motivos reais, não parecem obter correspondência com a biografia verídica do autor (o suicídio de Isabel, por exemplo). Outros, como a aparição do espectro de seu pai, durante um sonho, são completamente impregnados de um fundo de verdade confiável. Para tais esclarecimentos, em muito auxiliou o breve ensaio explicativo que Tabucchi publicaria pouco depois numa revista francesa e que até nós chegou pela utilíssima tradução do poeta Pedro Tamen.

No fundo, esse encontro com o pai é que aparenta constituir o motivo mais forte que suportou a criação de toda a obra, se bem que fique reservado para o fim o encontro com Isabel (que suicida-se devido à depressão resultante de um aborto), concedendo ao acontecimento um relevo digno de nota.  Mas, mesmo que toda a narrativa se desenrole em Lisboa (cidade onde o pai, antigo marinheiro, em tempos atracou), retrate as peripécias de um cálido Domingo de Julho (como aqueles que, durante a época estival, tão bem caracterizam a capital portuguesa) ou contribua sadiamente para homenagear um povo e um país, o metafísico diálogo que, na realidade, teve com o seu falecido pai assume-se como a estrutura principal de toda a arquitectura deste trabalho. E, provavelmente, o mais urgente motivo de expiação como forma de obter uma tão desejada (e necessária, convenhamos) paz interior.

Mas foquemo-nos, agora, na jornada empreendida pelo “eu”. Sublinho, desde já, o facto da acção se desenrolar em pleno Verão, num dia de alucinogénias ondas de calor flutuante, o que só vem acentuar o carácter onírico dessa estranha e mística deambulação. A mesma inicia-se junto ao cais da cidade. Aí, o “eu” aguarda a chegada de um poeta famoso, já atrasado para o suposto encontro. Essa figura, no entanto, permanecerá oculta da percepção do leitor até ao último capítulo do livro, onde sem grandes surpresas de revela. Afinal, o facto de ter sido um dos mais célebres poetas portugueses de sempre e de ter passado grande parte da infância na África do Sul dirá (quase) tudo a respeito dessa obscura personagem. A mesma parece, contudo, ser, numa espécie de osmose, a principal causadora de todas as estranhas peripécias que ao longo do dia o “eu” vivencia. O próprio, na verdade, chega a amigavelmente o acusar de coisas tais, sem que daí se extraiam grandes consequências ou conclusões.

Seja como for, é um facto de que nas quase doze horas anteriores ao encontro o “eu” se confronta com figuras do seu passado, misteriosamente ressuscitadas, uma última vez, para o tempo presente da narrativa. O acto só poderá assumir os contornos de uma “sadia alucinação”, onde a linha temporal quase se extingue e tudo se desenrola numa espécie de acção/realidade contínua. Depreende-se, portanto, a estranheza do caso e da própria apresentação do mesmo, por um lado; mas, por outro, compreende-se e, como tal, de bom grado aceita-se a necessidade que ostenta em seu âmago. De outro modo, como seria servido o seu propósito mais recôndito e urgente?

Na verdade, o “eu” nem reconhece, conscientemente, a razão de subitamente se ver em Lisboa, aguardando o encontro com o dito poeta. Apenas se recorda de estar numa quinta de amigos em Azeitão (pequena e bela vila no distrito de Setúbal, Portugal), nada mais. Não obstante, aceita a nova realidade e nela empreende os passos que sente necessários, guiado pela invisibilidade de uma força de luminosas intenções. Quando o “sonho real” termina, de novo se vê em Azeitão, em plena quinta, admirando a finíssima luz da lua. E só então, nesse derradeiro culminar, é que o desfecho emocional se garante, a despedida se cumpre e a chaga se fecha: "Boa noite, ou melhor: adeus".



O romance foi escrito e publicado em 1991, pelo que a Lisboa nele retratada, com suas peculiares gentes e pitorescos jeitos, é a cidade que existiu durante a primeira parte da década de noventa. Desde esse tempo, ainda que as percepções possam julgar o contrário, muito mudou. Inclusive as expressões do português que então era falado - uma espécie de prolongamento linguístico da década anterior onde certos elementos, nomeadamente estrangeirismos, que desde há muito haviam sido introduzidos no vocabulário corrente ainda se faziam notar. Um dos exemplos mais flagrantes é o termo “chauffeur de táxi”. Actualmente, a palavra de origem francesa caiu num quase completo desuso, sendo naturalmente substituída por expressões mais adequadas à linguagem em vigor: “motorista” ou “condutor”. No entanto, quem viveu e conheceu o Portugal dessa época por certo não impedirá um agradável acesso de saudosismo instantâneo. Nos dias de hoje, certos vocábulos, ou mesmo formas de estruturar uma frase, poderão só mesmo encontrar paralelo nos ditos e nos dizeres proferidos por uma população mais idosa. Pode o romance parecer, sob uma certa óptica, desactualizado, mas sob um outro prisma não deixa de se assumir como o símbolo de uma década já extinta. Isto sem nunca renegar o intuito de cantar a imagem de um povo pleno de peculiaridades. De um determinado modo, esse aspecto não intencional, a princípio, torna o romance especial.

O estilo gráfico da obra é denso, e para tal circunstância deve o leitor ser previamente avisado, uma vez que Tabucchi, à semelhança de Saramago, não construiu diálogos espaçados e pausados, isto é, com direito a travessão para melhor entendimento da vez de cada personagem interveniente. Assim sendo, os mesmos são apresentados de forma corrida, com meras vírgulas a delimitar o essencial, o que não só visualmente como também ao nível da absorção literária contribui para a elaboração de algo pesado e de aparente complexidade. Contudo, ainda que a fluidez do discurso corra riscos de permanecer ameaçada e os parágrafos condensados e longos não pareçam auxiliar do melhor modo, a simplicidade da linguagem amiúde utilizada, como se fosse uma simples conversa de café entre amigos, à época, contribuí para aligeirar o pesadume que o imenso mar de letras poderá provocar no leitor. Ainda assim, graças a este último factor, uma certa leveza é imprimida ao discurso, harmonizando-o.

Apesar de toda a história relatada ao longo dos capítulos, da expiação urgente e dos estilos de escrita, o que se extrai desta narrativa de contornos místicos, plena de sonho e ilusão (à semelhança dos melhores trabalhos de Jorge Luís Borges), é o muitíssimo bem conseguido retrato da cidade escolhida e dos habitantes que a povoam. Mesmo sendo esses elementos o digno “pano de fundo” sob o qual tudo o mais de constrói, o ambiente é extremamente bem captado e transmitido, o que só embeleza ainda mais os esforços de Tabucchi em nesta obra concretizar uma singela homenagem a Portugal e aos portugueses.

Em Março de 2012, aos sessenta e oito anos de idade, Antonio Tabucchi falece em Lisboa, no seio das gentes que tanto amou e de um país que certamente lhe estará fortemente agradecido pelo preciosíssimo contributo literário a uma pátria que foi mãe, ao longo de séculos, de poetas e escritores de digno renome. A esse glorioso panteão, é justo dizê-lo, junta-se mais um nome que de estrangeiro só tinha a aparência.

“De qualquer modo, é bom que saibas uma coisa, disse o meu Pai Jovem, não foi por minha vontade que eu apareci neste quarto, foi a tua vontade que me chamou, porque eras tu que me querias sonhar, e agora só tenho tempo para te dizer adeus, adeus meu filho, a criada está quase a bater à porta, eu tenho de partir”.

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