Quando a literatura é motivo para comercias de... perfume

David Lynch não é apenas um dos grandes diretores de cinema, produtor de imagens e histórias que têm feito a cabeça de muitos cinéfilos desde há quase quatro décadas. Ele também teve uma temporada de sucesso como diretor comercial, fazendo anúncios para entre outras empresas  Alka-Seltzer, Barilla Massas e Georgia Coffee. Privilégio para poucos, vê-se.

Em 1988, depois do sucesso com Blue Velvet e pouco antes de começar um seriado que se tornaria marco para a TV, Twin Peaks, ele fez seus primeiros comerciais – um quarteto de propagandas para o perfume Obsession, da Calvin Klein. Até aí tudo bem. Mas, há propagandas e propagandas. Essas, em específico, bebiam diretamente de alguns clássicos da literatura, como F. Scott Fitzgerald, D. H. Lawrence e Ernest Hemingway. Há ainda rumores de outro comercial disponibilizado a pouco no Youtube, que é atribuído ao diretor e que usa da literatura de Gustave Flaubert.

Os comerciais seguem um padrão específico. Filmados todos em preto e branco, com pessoas bonitas de olhares vagos, tudo o que se espera de um anúncio da Calvin Klein. O dedo de Lynch está na estética onírica, o tom de um sonho, com os rostos sempre enquadrados de perto e com a expressão visual em transição estrelada. O resultado é a construção de uma expressão romântica, bonita e sensual.

Num dos anúncios (veja o vídeo a seguir) são passagens de O grande Gatsby que ilustram a narrativa:


“Ele sabia que quando ele beijasse essa garota, e para sempre devotasse suas visões inexprimíveis ao seu hálito perecível, sua mente nunca mais se elevaria como a mente de Deus. Ele esperou e ouviu por mais um momento o diapasão que soara contra uma estrela. E então a beijou. Ao toque de seus lábios, ela abriu-se para ele como uma flor, e a encarnação estava completa.”


O outro anúncio recorre a trechos de Mulheres apaixonadas, de D. H. Lawrence:

“Seus dedos foram sobre o molde de seu rosto, mais seus traços. Como era diferente e como era perigoso! Sua alma estremeceu com o reconhecimento completo. Este foi a reluzente maçã proibida... Ela o beijou, colocando os dedos sobre seu rosto, seus olhos, suas narinas, sobre as sobrancelhas e as orelhas, o pescoço, a conhecê-lo pelo toque.”

Lynch mostra uma loira com vestido de brocado que paira sobre seu provável belo amante que está deitado num divã. Seguindo o texto, ela passeia num reconhecimento das feições do homem antes de se inclinar para um beijo.


E, finalmente, o anúncio em que Lynch utiliza do texto de Hemingway, de O sol também se levanta:

“Fiquei acordado pensando e minha mente pulando. Então eu poderia manter-se longe dela, e comecei a pensar em Brett. Eu estava pensando em Brett e minha mente começou a começou a se formar uma espécie de ondas suaves. Então, de repente, eu comecei a chorar. Depois de um tempo, o que era melhor era está deitado na cama, ouvi os bondes pesados passarem por... e fui dormir.”

Neste anúncio, um homem seminu deitado acorda numa sala escura cheia de sombras grotescas. Ele é assombrado pelo fantasma de uma mulher andrógina. Há um flash de raio, e em seguida, a mulher beija seu  rosto. Lynch fecha a câmera no olho da personagem, do qual vem uma única lágrima.

O ator do anúncio é James Marshall e trabalhará com Lynch em Twin Peaks como fez Lara Flyn que aparece no comercial que toma por base um texto de Flaubert. Além de visualizar traços estilísticos do diretor, o que prevalece nas encenações do texto original é o ideal de fidelidade aos autores.

Esses anúncios fizeram tanto sucesso que Lynch foi logo inundado por pedidos para fazer comerciais para outras empresas de grife como os perfumes da Giorgio Armani e da Yves Saint Laurent.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

A bíblia, Péter Nádas

Boletim Letras 360º #575