Camille Claudel 1915, de Bruno Dumont



Camille Claudel (Fère-en-Tardenois, 1864-Montdevergues, 1943), a escultura amante de Auguste Rodin que enlouqueceu por amor, a aluna cujo talento foi manipulado por seu mestre, a bela abandonada e humilhada, a mulher artista chutada pelos poderes masculinos; em definitivo, uma das forjadoras modernas desse arquétipo do feminino orgulhoso, romântico e cruel, da charmosa perturbada. Isabelle Adjani rendeu-se em 1989 ao personagem e o encarnou junto com Gérard Depardieu no filme de Bruno Nuytten Camille Claudel e agora é outra rainha do cinema europeu, Juliette Binoche, quem se aproxima com a lenda da artista em Camille Claudel 1915, escrita e dirigida por Bruno Dumont.

Até aí há as coincidências entre um e outro filme. A de Binoche de Dumont, minimalista e atroz, se detém num ponto sem retorno: o primeiro ano de encarceramento da escultora no manicômio de Montdevergue, próximo de Aviñón, de onde jamais sairia. “Com 16 anos li uma biografia sua que me tocou profundamente que passei minha juventude com uma foto sua junto à minha cama”, explica Binoche. “De alguma maneira sempre foi uma presença familiar para mim. A ideia de interpretá-la, sem dúvidas, era distante por existir já o filme de Isabelle Adjani. Sinceramente, pensei que a faria”.

Nunca se deve subestimar a tenacidade de uma atriz como Binoche: se saiu com a sua dissociando totalmente do referente cinematográfico anterior e indagando na trama final da vida da escultora que mal viveu em Montdevergues quase trinta anos. Ali perdeu sua liberdade, sua beleza e sua arte e ali morreu num outono há 70 anos. Seu corpo foi enterrado numa vala comum com outras loucas sem cumprir seu único sonho, descrito assim por ela em uma carta ao seu irmão Paul: “Estou chateada dessa escravidão. Gostaria de estar em minha casa e fechar bem a porta. Não sei se poderei realizar este sonho, estar em minha casa”.

Essas cartas são o único guia que Binoche se utilizou para preparar seu personagem. “Eu tinha que adivinhar as sequências. Igual a Camille que não sabia o que ia acontecer, eu tampouco. Meus únicos papeis foram as cartas com seu irmão. Camille tinha um mundo interior que eu queria torná-lo visível, em sua cabeça não paravam de acontecer coisas e essas sensações, que não se dizem, era importante colocá-las em contato com o espectador. Era uma artista e, como para qualquer criador, a observação era fundamental em sua rotina diária”.

A solidão e o desespero se fazem presentes de maneira sutil num filme quase gris e quase mudo. “Não queria converter sua loucura numa caricatura, ela sofria crises, mas também era uma mulher sã. Tinha humores que iam e vinha. Poder expressar com equilíbrio sua paranoia era muito importante para mim”.

De mão, Binoche-Claudel passam pelo manicômio sem apenas falar, num delicado trabalho realizado com atores naturais (exceto a protagonista, todas são internas de um manicômio real) cuja inquietante presença multiplica a força do que se intui. “Antes de filmar passamos duas ou três semanas convivendo com as internas em seu espaço. Algumas me chamavam diretamente por Camille e outras Juliette, embora todas sabiam que era atriz. Estabelecemos um jogo muito bonito”.

Isolada à força, a única rebelião possível de Camille Claudel, seu único poder, era negar-se a si mesma e deixar de criar. Ela fez. E nos últimos 30 anos de sua não voltou a esculpir. “Camille não quis voltar a criar porque fazê-lo seria dar razão aos que a mantinham presa. Ela se resistiu, foi sua marca de manter o controle e de mandar-lhes, finalmente, todos, à merda”.

A atriz confessa que não foi simples encarnar uma mulher ante o espelho deforme da loucura. “No princípio das filmagens foi difícil porque eu me sentia presa por Camille. Eu despertava por noites aterrorizada, morta de medo. Mas ao fim foi tudo ao contrário, me sentia enormemente feliz. Desfrutei muito toda a reta final e quando terminamos o filme viajei ao lugar onde ela havia nascido,  o lugar em que ansiava voltar e sua família jamais lhe permitiu tal regresso. Eu sentia a necessidade de fechar o círculo por ela. Sua memória me forçou a ir até este lugar que quis está até sua morte. Ali vive um descendente de seu irmão e gostei de conhecê-lo, falar com os seus e visitar a casa da família. Foi uma boa decisão”.

Binoche assegura que não tem ir com seu trabalho, que se perder a cabeça nunca será por isso. “Talvez com alguma relação sentimental eu poderia ir mais além da razão, é o mais próximo que eu estive deste desequilíbrio, mas não com meu trabalho. Ao contrário, meu trabalho é o que me permitiu canalizar bem minhas emoções até obter a ser uma pessoa, isso asseguro, bastante calma e paciente. É um presente que me acalma”.


Essa mesma serenidade que negaram a uma artista amordaçada até a morte. Há uma foto aterrorizante de Camille Claudel no manicômio de Montdevergues. Nenhum traço de sua beleza. É uma anciã prematura com um sorriso largo no rosto. Impossível reconhecer nela a jovem viva e furiosa que Paul Claudel descreveu em Minha irmã Camille: “Não, que essa menina nua é minha irmã! Minha irmã Camille. Suplicante, ajoelhada, humilhada, essa arrogância, esse orgulho, assim estava representando a si mesma. Suplicante, ajoelhada, humilhada e nua! Tudo está acabado!”.


* Texto escrito a partir de versão livre para "Camile Claudel, el orgullo de la locura" de Elsa Fernández-Santos, jornal El País

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

A bíblia, Péter Nádas

Boletim Letras 360º #575