Vinicius de Moraes: músico e poeta


Por Adriana Borges

Tom Jobim conheceu Vinicius de Moraes em um bar no Rio de Janeiro quando o poeta procurava um músico para sua peça Orfeu. A parceria rendeu a construção de parte significativa do legado musical brasileiro.

Vinicius de Moraes nem sempre foi músico, e ao adentrar o universo musical carregou consigo a poesia que antes estava restrita apenas aos livros. Desde o princípio sua obra literária prezou pelo lirismo, ainda que inicialmente esse “eu lírico” estivesse mais amarrado a um universo religioso neo-simbolista, onde o amor estava vinculado ao “espírito” e a mulher em sua dimensão física simbolizava o pecado. As poesias eram construções em torno do que chamavam de “esquemas eternos”, ou seja, do esotérico, o metafísico, o universo em sua imaterialidade, traços herdados de sua educação católica e das influências literárias de autores como Rimbaud, Claudel, Baudelaire e Augusto Schmidt, o que lhe valeu posteriormente, o título de “inquilino do sublime”, por seu amigo Otto Lara Resende.

No entanto, a escolha por simplificar sua obra, com o objetivo de “comunicar-se mais e melhor” é que fez com que Vinicius de Moraes optasse pela música popular, onde sua poesia se tornou uma expressão do cotidiano, o que Alfredo Bosi ao analisar parte de sua obra literária faz referência a uma “urgência biográfica, onde ocorreu um deslocamento do eixo do poeta lírico por excelência para a intimidade dos afetos e para a vivência erótica”. (BOSI, 1989 p.514)

A aproximação com o cotidiano não resultou em uma perda de lirismo, mas em uma nova construção e expressão do “eu lírico” que foi moldado por uma nova linguagem, um nível estético mais simples, onde o amor é substancial para o poeta. Tratou-se na verdade de um novo jeito de reescrever seus versos, onde seu impulso, seu estilo pessoal se sobrepôs ao rigor e a estética da poesia formal, se assim posso classificar.

Por meio de sua obra como um poeta da música popular Vinicius de Moraes atuou intensamente em momentos muito importantes para a história não apenas da cultura, mas da política do Brasil, dialogando e convivendo com seus protagonistas e traduzindo em suas poesias “cantadas” todo este cenário político-cultural que marcaram o país de 1950 a 1970.

Embora tenha traduzido em suas músicas os conflitos e os desejos de construção de uma nova nação, de um novo ”povo”, um novo homem brasileiro, Vinicius de Moraes não deixou de cantar o amor, ponto central de sua obra. Neste caso, Vinicius de Moraes mantém em sua poesia o amor como um sentimento que converge em dor, tristeza, sofrimento e morte, quase sempre vinculados à mulher amada.

Para elucidar melhor esta afirmativa, podemos ainda que de forma didática, dividir a obra de Vinicius de Moraes em três momentos: o primeiro, o poeta metafísico, onde o amor é expresso em constantes conflitos entre a matéria e o espírito, o segundo a opção pela poesia do cotidiano, onde o amor passa a ser carnal, com uma escrita coloquial, intimista e muitas vezes biográfica, poesia esta que foi ainda mais simplificada em termos estéticos para configurar a poesia escrita para as melodias da música popular, e por fim o poeta e músico engajado, em que parte de sua obra assume uma conotação política e social. Essa divisão não tem por objetivo simplificar ou reduzir o valor da obra deste autor, mas ela é necessária na medida em que ajuda esclarecer o ponto central deste trabalho, e que é também o título do mesmo.

Ao optar pelo conceito de ruptura seja no campo político ou cultural através da obra de Vinicius de Moraes, o objetivo deste trabalho é observar mudanças sociopolíticas ocorridas entre 1950 e 1970, período considerado por historiadores como Marcelo Ridenti como de grande efervescência e rápidas transformações em todos os campos da sociedade, em que a sociedade brasileira passou de uma maioria agrária para se tornar eminentemente urbana, foi também um momento de afirmação de uma classe média intelectualizada que acabou por assumir o lugar de tradutor dos interesses sociais (RIDENTI, 2000, p.42-57).

Veja que é importante observar que a análise dos discursos de ruptura é feita “através” e não “na” obra de Vinicius de Moraes, uma vez que o que se quer afirmar aqui é que, apesar de sua obra poder ser compreendida em três momentos distintos - e isso se torna mais essencial para a música -, existe uma linearidade em sua produção na questão da temática, na manutenção do “eu lírico” do poeta onde o amor é o tema central. Essa linearidade não deve ser entendida aqui como uma acomodação entre esses momentos de mudança ou de uma adaptação a lógica do mercado cultural, uma vez que o autor tem ciência que enquanto artista está sujeito aos meandros da indústria cultural. Enquanto produtor de musica popular brasileira Vinicius de Moraes foi muito mais um “elemento agregador”, ou seja, costurou em sua produção todas as possibilidades oferecidas pela produção musical do período, garantindo uma forma de “sustentação” da visão de mundo do poeta, seja na forma de poesia “escrita” ou “cantada”. Compôs samba, bossa nova, músicas de protesto, músicas para festivais, sem deixar de compor músicas carregadas de sentimentalismo onde o amor novamente esteve presente. É essa versatilidade provavelmente um dos fatores que mais enriquecem a sua obra.

Assim o que se pretende é analisar parte da obra musical de Vinicius de Moraes em que se evidenciem o discurso de ruptura contido nos momentos de transição cultural e política do Brasil nos anos de 1950 a 1970. De forma que se faz necessário definir algumas questões essenciais: 1) o princípio para a escolha das músicas a serem analisadas neste trabalho; 2) o tipo de recorte será feito por meio do qual a obra musical e os acontecimentos políticos possam convergir na hipótese levantada.

Levando em consideração que o número de canções compostas por Vinicius de Moraes ultrapassa o número de 400, a proposta é escolher algumas músicas a partir de suas parcerias, uma vez que através dessas composições é possível inserir Vinicius de Moraes nesses momentos de quebra com a tradição vigente. Leva-se em conta também o fato de que cada parceria dessas apresenta diferenças que dizem respeito à formação intelectual, influências musicais, classe social e personalidade e a diferença de idade que acabam por criar a cada parceria um novo ambiente para a produção.

Vinicius de Moraes com Baden Powell

Dito isto, os parceiros escolhidos são os que mais tiveram destaque na trajetória do artista, que são Antônio Carlos Jobim, Carlos Lira, Baden Powell, Toquinho, Chico Buarque e Edu Lobo. Os dois últimos são expostos nesse trabalho nem tanto pela relevância mercadológica, já que em termos de produção, realizaram em termos quantitativos menos que os primeiros já citados, mas inserem o poeta na lógica dos festivais da canção, que configuraram um novo espaço de produção e reprodução da música popular.

A parceria com Tom Jobim representa a entrada definitiva de Vinicius de Moraes para o universo da música popular e a também na confluência do erudito e o popular. Tom, como era conhecido, já havia iniciado sua carreira como músico nas noites cariocas, como pianista na Rádio clube do Brasil e como arranjador para a gravadora Continental. A parceria nasceu da trilha sonora para a montagem do musical Orfeu da Conceição para o teatro que estreou em 1956 e se consagrou com o primeiro sucesso da dupla e marco da bossa nova “Chega de saudade”.

Vinicius de Moraes, Nara Leão, Aloysio de Oliveira e Carlos Lyra. Ensaio para o musical Pobre menina rica.

A fase engajada de sua obra musical e poética é mais intensa em parceria com Carlos Lira, jovem filho da classe média carioca, também já fazia parte no cenário musical carioca, porém sem grande expressividade. Foi um dos fundadores do CPC da UNE através de quem Vinicius de Moraes esteve mais próximo da esquerda política brasileira. Baden Powell, com quem compôs os afro-sambas, foi um momento de resgate e revalorização da cultura negra e regional, na busca de construção de uma identidade do homem brasileiro, e que estaria em suas origens, na tradição que havia sido relegada num momento anterior. Foi também um momento de grande estranhamento, já que de todas as suas parcerias, talvez Baden tenha sido o parceiro com quem Vinicius teve muito mais diferenças que semelhanças, principalmente no que se refere às influências para a formação musical.

Já Chico Buarque e Edu Lobo configuram o universo dos Festivais da Canção que tiveram início no ano de 1965 pela extinta TV Excelsior e que representou uma nova fase para a música popular, na apenas na forma de se fazer canção, mas também no efeito que essa produção provocou em seu público. Toquinho foi a parceria mais duradoura, durou exatos 10 anos, e significou para o poeta o momento de releitura da sua obra, digo, trata-se de uma retomada de forma repetitiva de temas antes já explorados, sua obra é quase uma imitação de si mesmo (CASTELLO, 1994, p.19), mas foi também a consagração de Vinicius de Moraes como show-man, realizando um grande número de shows e dividindo o palco com parceiros e amigos. Sobre a importância de suas parcerias Vinicius de Moraes chegou a dizer em uma entrevista, fazendo uma analogia cheia de bom humor com a santíssima trindade em que e aos parceiros que “Tom”, “Carlinhos”, “Baden” e Toquinho seriam “Pai, Filho, Espírito Santo e Amém”.

Esta opção de análise a partir das parcerias justifica-se também na proposta de Marcos Napolitano, para quem a moderna música popular brasileira é concebida em períodos cruciais para sua transformação e que são de grande relevância para este trabalho. De acordo com o autor os períodos podem ser divididos da seguinte maneira:

a) ‘dos anos de 1959-1968, onde o lugar social do conceito de música popular brasileira sofre uma mudança radical, que mesmo’ incorporando o ‘mainstream’, ampliou os materiais e as técnicas musicais interpretativas, além de consolidar a canção como um veículo fundamental de projetos culturais e ideológicos mais ambiciosos, dentro de uma perspectiva de engajamento típico de uma cultura política ‘nacional-popular’’; b) dos anos de 1972-1979, observado ‘como um período histórico pouco estudado, mas fundamental para a reorganização dos termos do diálogo presente-passado, tanto no sentido de incorporar tradições que estavam fora do ‘nacional-popular’ quanto no de consolidar um amplo conceito de MPB, sigla que se define muito mais por um complexo cultural do que um gênero musical específico, dentro da esfera popular com um todo’ (NAPOLITANO, 2005, p.47-48)

Napolitano ao propor uma periodização desse conjunto de elementos que moldaram e transformaram a música popular brasileira aponta para um processo de releitura e revalorização do passado e da tradição musical que acabou por incorporar novos instrumentos, novas tecnologias e valores ideológicos, estéticos e culturais, além de assumir o lugar de tradutora dos interesses de uma classe média crescente, desde os anos de 1930, e que se entendia moderna e que encontrou nas artes, principalmente na música, um veículo de expressar seus anseios e sua visão de mundo enquanto grupo. De forma que a música popular enquanto expressão artística assume um valor totalizante, ou seja, tem valor político, social, econômico e cultural. Essa periodização também é importante para a compreensão no que concerne a relação produtor/receptor de cultura, ou seja, intelectuais/povo onde o povo passa a ser a matéria prima para a produção do que se concebe como cultura popular ora de forma singular ora de forma universalizada.

Essa periodização remete a um processo onde os intelectuais em boa parte dos movimentos culturais assumiram o papel de porta-voz do povo; através do teatro, do cinema, das artes plásticas e principalmente da música – por ter uma linguagem de acesso mais facilitado pela simplicidade e objetividade – parte da intelectualidade “traduziu ou tentou traduzir as demandas sociais, numa operação de confluência, negociação e viabilização de interesses antagônicos ou não” na sua relação com o povo (RIDENTI, 2000, p.52).

É a partir dessa lógica que se pretende construir essa análise que tem como ponto de partida parte da obra musical do poeta Vinicius de Moraes e a forma como ela traduz os conflitos, tradições e contradições do poeta próprio poeta e do meio no qual esteve inserido. Mas observe que periodizar não implica em desvalorizar outras expressões artísticas, musicais, nem tampouco os outros compositores que fizeram parceria com Vinicius de Moraes, é antes uma possibilidade de análise entre história e música lançando luz sobre a forma como ambas se traduzem, se interpretam e interpenetram.

Vinicius e Tom. Detalhe à direita, Chico Buarque.

Vinicius, Tom e a Bossa nova: o reencontro com a música popular

No que se refere ao século XX, os anos de 1950 significaram para o Brasil uma oportunidade de redimensionar seu processo de desenvolvimento e criação, caracterizados por rápidas e intensas transformações em todos os campos sociais. A intensificação do desenvolvimento inseriu o Brasil no universo do “novo”. A novidade era expressa na mudança comportamental dos grupos, onde pela primeira vez o mundo urbano se sobrepôs ao mundo rural no que se referiu a uma perspectiva do imaginário social brasileiro. O novo podia ser entendido como um sinônimo de moderno. O cinema novo, que garantiu uma releitura de temas nacionais, a nova literatura expressa através da poesia concretista, o novo teatro, que representou a busca por outras formas de comunicação cultura, a nova arquitetura que passou a buscar uma leveza em suas formas, o novo homem brasileiro, que seria criado a partir da urbanidade em detrimento do rural, a nova classe média ávida por transformações que lhes garantissem maior participação e representatividade no seio dessa nova política desenvolvimentista, e a bossa nova que para além de um novo estilo musical que rompia com a tradição musical vigente representou uma topografia geográfica da musica popular brasileira, onde o samba assume duas vertentes no que se refere ao próprio conceito de urbano, o samba feito no “morro” e o samba feito no “asfalto”, assunto do qual trataremos com mais detalhes mais adiante.

Neste caso a cultura tornou-se o lugar de reflexão, atuando como agente e resultante de transformações e onde a bossa nova, neste contexto “é uma vertente modernizadora que se pode relacionar ao processo desenvolvimentista, marcada pela crença na construção de uma nacionalidade de base hegemônica, pronta para reunir as energias esparsas de uma coletividade em direção ao futuro, que devia ser programado” (GOMES, 2000, p.123).

A proposta bossanovista apontava para uma música despojada dos excessos que estavam na música harmônica do samba tradicional, mas principalmente a música vinculada à Rádio Nacional como “os sambas canções que tinhas influências do tango mexicano, do tango argentino além de outros gêneros com influências norte americanas e europeias consideradas dramáticas por retratarem de forma poética as desgraças amorosas” (NAVES, 2008, p.246). Os intérpretes entoavam a voz de maneira operística, exageravam na gesticulação e no figurino, que ostentava muito luxo, brilho. De forma que a bossa nova tinha por objetivo promover o que Marcos Napolitano viria a chamar de “limpeza de ouvidos”, que era desqualificado tudo o que fosse identificado com o exagero musical.

A canção “Chega de saudade” foi concebida como um divisor de águas entre a modernidade e a tradição. Composta em 1958 por Vinicius de Moraes e Tom Jobim como parte do LP Canção do amor demais de Elizete Cardoso, recebeu uma nova roupagem em 1959 pelo violão de João Gilberto:
Vai minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser
Diz-lhe numa prece
Que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer
Chega de saudade
A realidade é que sem ela
Não há paz não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim
Não sai de mim
Não sai
Mas, se ela voltar
Se ela voltar que coisa linda!
Que coisa louca!
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos
Que eu darei na sua boca
Dentro dos meus braços, os abraços
Hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim,
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim
Que é pra acabar com esse negócio
De você viver sem mim
Não quero mais esse negócio
De você longe de mim
Vamos deixar esse negócio
De você viver sem mim
A canção inaugura a da perspectiva bossanovista a célebre batida do violão, o jeito intimista de cantar em que voz e instrumento adquirem uma mesma importância. No entanto a letra embora retrate o amor de forma menos dramática que nos sambas-canções, registrou o que seria essencial à obra viniciana que é o amor associado à dor, à tristeza, como na primeira e segunda estrofes em que a tristeza causada pela mulher amada tornou-se testemunha mensageira do sofrimento do poeta: “Vai minha tristeza, diz a ela (...) A realidade é que sem ela não a paz, não há beleza (...). No entanto esse sofrimento é amenizado na terceira estrofe, é condicionado: “Mas se ela voltar, se ela voltar que coisa linda(...)”. Não apenas pela possibilidade no que se refere ao amor de quem espera, mas a mudança rítmica, que nessa estrofe fica mais “alegre” sinalizando uma possibilidade de conceber o amor como uma realidade concreta.

Vinicius de Moraes e João Gilberto

Mas outro fator importante para se observar nesta composição é a construção do texto, a poética, que era mais sofisticada que muitas das canções que embalaram o movimento, como a composição “Obá-lá-lá” de João Gilberto de 1959 para o LP Chega de saudade:
É o amor
O ôba lá lá, ôba lá lá
Uma canção
Quem ouvir o ôba lá lá
Terá feliz o coração
O amor encontrará
Ouvindo esta canção
Alguém compreenderá
O seu coração
Quem ouvir o ôba lá lá
Terá feliz o coração
Ôba lá lá, ôba lá lá, ôba lá lá
A letra simples desta música faz alusão a um jogo de palavras e de linguagem consistindo apenas de quatro frases em que o amor é retratado de forma suave, de uma leveza quase infantil e que em alguma medida convergia com a perspectiva concretista pela forma objetiva e direta de dar uma mensagem.

Vinicius de Moraes só veio compor uma canção de estrutura semelhante em 1962. A canção “Só danço samba” em parceria com Tom Jobim:
Só danço samba
Só danço samba, vai, vai, vai, vai, vai
Só danço samba
Só danço samba, vai
Só danço samba
Só danço samba, vai, vai, vai, vai, vai
Só danço samba
Só danço samba, vai
Já dancei o twist até demais
Mas não sei
Me cansei
Do calipso ao chá chá chá
Só danço samba
Só danço samba, vai, vai, vai, vai, vai
Só danço samba
Só danço samba, vai
Só danço samba
Só danço samba, vai
Só danço samba
Composta num momento em que a bossa nova no Brasil já perdia espaço para outras musicalidades mais politizadas e que buscavam revalorizar a tradição da cultura popular, inclusive o samba e a sua tradição, “Só danço samba” garantiu espaço nos meios de comunicação como rádio e televisão. Embora siga a linha melódica e harmônica da bossa nova a letra de forma objetiva critica a influência de cultura norte americana, dando a o samba um valor substancial. Ou seja, o homem moderno que dançava os ritmos característicos de outros países, como o twist norte americano ou o calipso afro-caribenho e agora só dançava samba, que era o ritmo nacional (outra vez).

A música bossa nova consagrou o sucesso da parceria de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, onde a junção música e poesia receberam novo valor e dimensão. Vinicius de Moraes já tinha seu nome gravado na tradição da literatura, com livros reconhecidos pela crítica literária que o tornavam um importante nome da terceira fase modernista. No entanto a parceria também viria a evidenciar um estilo de escrita de seu compositor onde o amor é substancial a obra do poeta, mas está sempre associado a dor, a morte, a tristeza, a paz (ou sua ausência), palavras que sempre aparecem em suas composições. O amor também aparece em grande parte das canções como um sentimento transitório, que nasce e morre como que completando um ciclo, dando à sua escrita uma característica quase biográfica, já que o poeta está perdido nas contradições do amor que ora é triste ou alegre, traz paz ou desespero, mas esta sempre em movimento, se refazendo, se reconstruindo, que é uma característica inerente à condição humana.

Essa visão do poeta está contida na canção “Na hora do adeus”, composta em 1960 em parceria com Tom Jobim:
O amor só traz tristeza
Saudade, desilusão
Porém maior beleza
Nunca existiu pra iluminar
Meu pobre coração
Há que diga que o amor que se tem
É uma graça de Deus
Outros dizem que a graça se acaba
Na hora do adeus
Mas, seja como for
Perdoa, amor
E volta aos braços meus
A música fala da experiência singular que é amar, apesar das contradições que este sentimento implica. Digo, o poeta reconhece a beleza do amor mesmo que ele carregue em si o sofrimento, a desilusão que é seu fim em que “a graça se acaba na hora do adeus”, mas não impede o poeta de amar. Outro elemento que aparece de forma regular na obra de Vinicius de Moraes. A mulher é sempre invocada a perdoar uma ausência, uma traição que remonta à canções da tradição do samba como Camisa amarela de Noel Rosa, e que a mulher perdoa a ausência de seu companheiro durante todo o carnaval e retorna já na quarta feira de cinzas “cantando a jardineira (...)” e depois de dormir uma semana ainda acordou mal humorado “quis brigar comigo, que perigo, mas nem ligo/ o meu pedaço em domina me fascina ele é tal por isso não levo a mal pegou a camisa amarela, botou fogo nela/ gosto dele assim passou a brincadeira ele é pra mim”. Assim como na música de Noel, para a poética musical de Vinicius de Moraes a mulher agrega essa característica de ser resignada, de ser feita “pra ser só perdão”.

Para o poeta, a beleza está no sofrimento como um agente que proporciona uma atmosfera que favorece a criação, a poesia como expressão máxima do ser que ama, ainda que conscientemente ele perceba o amor como um ciclo que tem começo e fim. Como na canção “Felicidade”, também composta com Tom Jobim em 1959:
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranquila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor
A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
e tudo se acabar na quarta feira
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar
A minha felicidade está sonhando
Nos olhos da minha namorada
É como esta noite
Passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo, por favor
Prá que ela acorde alegre como o dia
Oferecendo beijos de amor
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
É feita uma comparação entre o amor e o carnaval como algo transitório, que vai passar. O carnaval é uma das maiores expressões culturais do Brasil e que influencia nas relações sociais e de trabalho, já que exige muito tempo de preparação para realizar um desfile de pouco mais de uma hora. Para os foliões a festa dura quatro dias, mas o que importa é estar na avenida, aproveitar o momento.

Outro fato muito relevante para a bossa nova é a mudança significativa na relação “eu e você” expressas pelo intimismo, no “falar baixinho”, quase como um diálogo, e em que um sentimento ou uma situação são singularizados, contrariando a tradição do samba como na música “Insensatez” de Vinicius de Moraes e Tom Jobim composta em 1960:
A insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor
O seu amor
Um amor tão delicado
Ah, porque você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração que nunca amou
Não merece ser amado
Vai meu coração ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração pede perdão
Perdão apaixonado
Vai porque quem não
Pede perdão
Não é nunca perdoado
Embalada pela batida sincopada do vilão a letra remete a um diálogo do poeta consigo mesmo, pela forma insensata como conduziu o amor, causando mágoa e dor. O tom lírico para expressar seu sentimento, dialoga com uma preocupação estética, principalmente as rimas (cuidado/delicado; desalmado/amado; razão/perdão) que conferem um nível de erudição mantida pelo poeta, pela preocupação com a forma, garantindo para quem ouve harmonia sonora. Mas vale ressaltara aqui que este intimismo tão caro a bossa nova, está muito mais condicionado à audição. É uma música muito mais para ouvir do que para dançar, fato que acaba por reforçar sua perspectiva erudita em detrimento do que é popular, e neste caso o popular assume um caráter pejorativo, de menor valor.

As composições de Vinicius de Moraes parecem não ter seguido de forma fiel os padrões bossanovistas no que concerne a temática. Suas letras estiveram em sua grande maioria carregadas de um lirismo camoniano, de um sentimentalismo que conferiram a bossa nova um refinamento poético e reforçava o caráter elitista do movimento.

Observe que fazer referência ao caráter elitista da bossa nova, não compreende um esforço em desconsiderar seu valor como um importante veículo de transformação da música popular. Mas essa característica era intrínseca ao movimento, uma vez que foi gestado no seio da classe média carioca, numa tentativa de produzir uma cultura musical a partir de novas tecnologias e musicalidades e da apropriação do samba, num processo de releitura, resultando assim num “samba que não é samba” como disse João Gilberto.

João Gilberto entre Luiz Roberto e Quatera, de Os cariocas, Tom Jobim e Vinicius de Moraes (ao fundo). Anos 1960. Rio de Janeiro. Foto: Folha de São Paulo.

Dentro de uma perspectiva geral, a bossa nova se contextualizou num momento caracterizado pela aceleração do desenvolvimento do Brasil, “a caminho de ser um país urbano e, para isto, buscou novas formas visando a aceleração do tempo para vencer o atraso e o subdesenvolvimento, palavra de ordem nos anos 50-60. A fixação de um país urbano é uma linha força desses tempos que se queriam novos”. (GOMES, 2002, p.129). Isso implica dizer que foi um momento de confluência dos ideais da classe média – principalmente carioca – e do governo do então Presidente Juscelino Kubitschek de tornar o Brasil um país moderno, pautado pela urbanidade.

Se por um lado o governo JK desenvolveu uma política pautada pelo desenvolvimento industrial por meio do qual o Brasil entrou em uma “fase avançada de sua industrialização e pela internacionalização da economia com a entrada maciça de capitais estrangeiros no Brasil” (ANASTASIA, 2000, p.22), por outro a bossa nova incorporando esse processo e as novas tecnologias vindas de fora criou uma nova musicalidade, também moderna, em que ficasse claro que o Brasil não era apenas o lugar do carnaval, do futebol, da favela, do atraso. O Brasil também seria através da bossa nova o espaço de uma música refinada, capaz de satisfazer o gosto mais apurado, tanto no Brasil quanto no exterior. Neste caso, pode se falar em um projeto convergente de internacionalização do Brasil, onde o país seria inserido num contexto mundial de desenvolvimento.

Para a política, atingir o desenvolvimento era um compromisso a ser atingido a partir de um Plano de Metas, no sentido de “promover um ajustamento adequado entre as aspirações das elites e das massas” uma vez que seus objetivos “eram compatíveis com os interesses das elites e das massas urbanas” e que tinha como síntese a construção a transferência da capital federal para o centro oeste. Brasília foi planejada como um símbolo de modernidade e urbanidade, pela realização do projeto e pela arquitetura de Oscar Niemeyer (LAFER, 2002. p.60)

A convergência de interesses e o apoio à política de JK e seu projeto desenvolvimentista seria reconhecido por Nara Leão em agosto de 1963 em uma entrevista concedida à revista O Cruzeiro quando afirmou que “foi somente com o desenvolvimento econômico que o país pode vivenciar um avanço cultural importante, bem como o surgimento de sentimentos nacionalistas e seu movimento em prol de uma arte brasileira” (apud GAVA, 2006). Sentimento este que tinha um caráter muito mais singularizado, digo, estava vinculado a um grupo restrito e que tinha sua maioria expressa através das classes médias urbanas.

Esse nacionalismo contido nos discursos de intelectuais que remetem a esse momento de prosperidade político-cultural e por meio do qual se inicia uma discussão muito mais intensa no que se refere a uma busca identidade é tema importante para Marcelo Ridenti, que em seu livro Em busca do Povo Brasileiro, - que trata (de forma simplificada e não reducionista) de construir um panorama sobre o Brasil dos anos de 1960 e sua busca de reconhecer e representar-se como povo brasileiro através da participação de artistas e intelectuais de esquerda e do movimento estudantil representados pela UNE e CPC - colhe diversos depoimentos de intelectuais que tiveram suas trajetórias política ou cultural atreladas aos anos 1950-1960. Em um desses depoimentos, do roteirista, dramaturgo e escritor Izaías Almada diz:

(...) Era mesmo uma procura de identidade cultural para o país; todo mundo gostava de ser brasileiro porque a Bossa Nova, o Cinema Novo, o mundo inteiro conheceu .(...) O teatro estava sempre cheio, aquilo dava uma alegria muito grande. Havia um orgulho se der brasileiro naquele momento (...). (RIDENTI, 2000, p.38)

Esse clima de confluência na política e a bossa nova também foi contemplado por Vinicius de Moraes em seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro no ano de 1967, por meio do qual se refere a um movimento comum de renovação que pairava naquele momento.

Esse desejo e apoio a política desenvolvimentista do governo J. K. foi em alguma medida traduzido na canção “Brasília: Sinfonia da Alvorada”, uma composição de Vinicius de Moraes e Tom Jobim em razão da construção de Brasília, que naquele momento era a expressão máxima da modernidade, pelo projeto político, pela arquitetura e também pela música. Fato que fica evidente quando Vinicius de Moraes na contra capa do LP, que recebe o mesmo nome da sinfonia, gravada nos estúdios Colúmbia do Rio de Janeiro, escreveu um texto onde fala de sua satisfação em fazer parte de algo tão grandioso como a construção da nova capital, da sua amizade com o presidente Juscelino e com Oscar Niemeyer. O mesmo revelou uma demonstração clara de apoio, como também do sentimento de confiança do qual estavam contagiados os “novos” brasileiros. Ao final do texto, em agradecimento, em seu nome e de Tom Jobim, Vinicius declara: “(...) sem embargo de uma constante vigilância crítica, nos foi sempre do maior estímulo nesse empreendimento em que esses dois sentimentos são determinantes: amor pela obra e confiança no futuro de Brasília e do Brasil”.

A composição que recebeu fortes críticas por ter sido feita sob encomenda pelo presidente da república, tinha um tom épico e representava o esforço de resgatar o mito do bandeirante na figura de Juscelino Kubitschek. Como composição musical, pela técnica empregada nos arranjos e harmonia, a sinfonia deu a Tom Jobim a oportunidade de provar seu conhecimento erudito, enquanto que em termos poéticos, pela linguagem empregada e pela construção estética, para Vinicius foi uma maneira de provar aos críticos de sua obra que ainda era um poeta aos moldes dos livros, sem que com isso fossem descaracterizados como ícones da BN.

Para Vinicius de Moraes a bossa nova, mais do que parte de um processo de renovação, foi a porta para sua entrada no universo da música popular e para uma definição em sua forma de compor, uma estrutura poética (no que se refere aos temas mais explorados e a forma como estão inter-relacionados) e que seria predominante em sua obra. Para o Brasil a bossa nova significou a inovação, a modernização da música a partir de uma perspectiva moderna, “mudou a imagem social dos músicos que passaram a se profissionalizar, deu um novo valor mercadológico a música brasileira, que deixou de ser vista como exótica e folclórica” (NAVES, 2008, p. 243-244), como também deu um novo significado para a relação compositor/intérprete em que, ainda que seja o intérprete quem “dê cara” a música com sua interpretação, o compositor passou a ter o valor de sua obra reconhecido na lógica de produção da cultura musical.

Quanto a parceria Vinicius e Tom ela ainda rendeu muitos frutos, até início dos anos de 1970, mas teve sua fase criativa mais intensa até meados dos anos de 1960 quando em razão de novas transformações a música e seus produtores seguiram novos caminhos.

Referências

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1989.
CASTELLO, José. Vinicius de Moraes: o poeta da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
GAVA, José Estevam. Momento Bossa Nova. São Paulo: Anamblume; Fapesp, 2006.
LAFER, Celso. JK e o programa de metas (1956-61): processo de planejamento e sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
MOURA, Roberto M. MPB - Caminhos da arte brasileira mais conhecida no mundo. São Paulo: Irmãos Vitale, 1998.
MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor: crônicas e poemas. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
_____. Nova antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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* Adriana Borges é mestre em História pela Universidade Federal do Goiás.

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