O lustre, de Clarice Lispector

Por Rafael Kafka



Muitos leitores e críticos dizem que a obra de Clarice Lispector é pouco engajada, pouco ligada ao contexto social e político que rodeava sua produção no meio do século XX. Por essa fala, podemos interpretar inclusive que Clarice seria uma representante da torre de marfim simbolista em pleno século XX segundo tais leitores e críticos: uma escrita bela, difícil, rebuscada ao extremo, mas que nada de concreto diz sobre o mundo no qual vivemos.

Durante algum tempo, senti-me tentado aderir a tal visão da obra de uma de nossas maiores prosadoras. Porém, amadurecido ainda mais pelas leituras existencialistas e absurdistas feitas por mim, creio que haja sim um engajamento de Clarice, mas não com uma fatia ou outra de nossa realidade social, e sim com o ser humano em si.

Contudo, esse humano em si não deve ser visto como uma natureza humana. Se falarmos como Camus e seu termo essencialista, tal essência é a liberdade. Mas se falarmos como Sartre, de quem a influência fica mais fácil de se perceber, veremos que as personagens de Clarice são nada, são tudo, são o que querem ser. São seres que navegam pelo mundo espantados com suas sensações, com suas reflexões, com a concretude de uma realidade sustentada pelo viver e pelo sentir. São seres que vivem a liberdade, deliciam-se com ela e com o choque das ações aparentemente sem nexo que juntas formam sua história.

Clarice mostra então o ser humano livre de determinações. O ser humano procurando atrás de cada verdade incrustada em si sob a forma de discurso a verdade absoluta de nosso nada de ser: somos o que queremos ser e podemos deixar de ser o que queremos ser daqui a cinco segundos. Daí nasce a angústia: estamos sós no mundo, nenhum rótulo basta para nos descrever, nem uma atitude é definitiva e somos donos de nós mesmos, responsáveis por malogros e por glórias. A náusea de Antoine Roquentin é marca registrada de quase todas as personagens de Clarice, as quais vagueiam pelo mundo em enredos banais como se vivessem epopeias repletas de um teor dramático.

Tais personagens são femininas, provavelmente inspiradas em vivências pessoais da escritora, ou no fato de ela ser uma mulher que se sente melhor falando de mulheres. O certo é que ao falar de moças comuns, sem grandes atributos, até mesmo sem grande intelectualidade, Clarice mostrou a sensibilidade existente em cada ser humano, inclusive a mulher.

Vale lembrar que estávamos em pleno crescimento do movimento feminista quando as obras de Clarice começaram a vir à tona. Desde o século XIX, obras como a de Machado de Assis mostravam as mulheres como seres complexos, de carne e osso, e não mais aquelas fadas da passividade as quais estávamos acostumados a ver nas obras literárias e na vida dos salões. Ao provocar ciúmes em Bentinho, Capitu mostrou-se uma consciência viva, capaz de guardar segredos e agir de forma misteriosa pela simples existência do termo “alteridade”. Clarice faz o que Machado fez, mas de dentro: mostrando toda a miríade de sentimentos que brotam em um ser humano fêmea, aquele mesmo ser que durante séculos foi visto como algo maniqueísta: o outro, o inessencial, como diria a musa existencialista Simone de Beauvoir.

O engajamento com o humano em Clarice leva-nos a ver o universo feminino como um universo humano oprimido, o qual tenta se rebelar, igualar-se em condições ao universo masculino. Não por panfletos verbais, mas pelo simples existir. Pelo simples viver, mostrando que homens e mulheres fazem parte da mesma condição humana condenada a ser livre.

As obras da autora são o homem revoltado camusiano mostrado como homem em sentido pleno: humano. O machismo aqui ganha a forma de uma grande deturpação do próprio conceito de ser homem e o feminismo nada mais do que a verdade absoluta de que no perceber o mundo somos todos iguais na diferença de cada universo individual.

No entanto, tudo é interpretação minha. Impressão de leitura. Obras literárias são algo aberto, em geral. E as obras de Clarice estão entre as mais difíceis da literatura mundial. Não por serem rebuscadas, e sim por serem abertas, permitirem diversas interpretações. Ou nenhuma: o seu modo de serem lidas é serem sentidas, vividas. São textos sinestésicos, fragmentados, impactantes. Vivos. Como espelhos quebrados, falam da vida como ela é: algo opaco, ambíguo, sem definição. Isso torna tão bela a escrita de Clarice, mesmo ela usando um esquema narrativo que chega a ser repetitivo, mas, paradoxalmente, sempre inovador.

Tal esquema narrativo basicamente se resume à vida de alguma personagem sem grandes atrativos, vivendo enredos simples, prosaicos, em momentos de situações-limites bastante reveladores quanto ao absurdo da existência. Muitas vezes, tais personagens embriagam-se tanto com o seu sentir livremente a vida, que largam de mão o amor e partem pela vida solitariamente, gozando-se de si mesmas e sendo pessoas plenas e sem culpa alguma.

Um livro no qual esse esquema se apresenta com força é o célebre A paixão Segundo G.H., no qual a protagonista questiona-se a partir de um medo idealizado de um ser frágil, uma barata, a concretude e a verdade de sua existência. E, em um ato de salvação, come o interior da barata morta para simbolizar para si mesma o seu despertar para a vida nova, sentida na carne, a qual se apresenta a ela. Descoberta é algo que persegue as personagens demasiadamente humanas de Clarice Lispector, e em O Lustre livro dela o qual li recentemente isso se mostra de forma bastante intensa e presente nas mais de duzentas e difíceis páginas do romance.

Tal livro conta a história de Virgínia, uma moça comum e sem grandes qualidades, desde sua infância. Porém, como é de esperar em livros de Clarice, o tempo é todo quebrado sem uma sequência lógica precisa, e o enredo se dá aos saltos: cheio de digressões. O que se sabe, é que Virgínia é criança no começo do relato e à altura do fim dele está na faixa dos 20 anos de idade.

As aventuras de Virgínia no começo terão a companhia de seu irmão Daniel, um rapaz sisudo, mal-humorado e com ar tirano. A garota se sente inferior a ele, que por ela é julgado como um ser superior de rara sensibilidade e inteligência. Podemos dizer que Virgínia vê em Daniel uma espécie de mestre, do qual ela jamais se separará no decorrer da história: mesmo com o rompimento de sua união física com o casamento deste, Virgínia ainda lembrará com grande saudade das conversas infantis dos dois irmãos.

A história alterna entre dois cenários: a vida no campo, em uma tradicional família patriarcal composta de pai, mãe e filhos (além de Daniel e da protagonista temos a misteriosa Esmeralda),  a qual vive em uma espécie de sítio  pacato em uma pequena cidade interiorana de um Estado brasileiro o qual não é especificado em ponto algum do livro.

Quando cresce, ela se muda para a cidade grande, cria uma vida adulta com romance, sexo e o desgosto de viver com tias chatas cuja existência é o puro tédio. Volta, então, a morar em sua casa por um tempo para finalmente se decidir a voltar a morar na capital, esperando achar nos lugares a cada escolha de mudança de rumo feitas as mesmas coisas deixadas para trás em seu devido lugar.

O texto é escrito de forma peculiar, tipicamente lispectoriana, tornando-se um misto de romance com poema em prosa. A linguagem do mesmo não é tão rebuscada, mas cheia de antíteses, paradoxos, sinestesias e um vocabulário o qual remete à crueza do sentir o mundo. A existência é retratada enquanto jogo aberto, a reflexão tenta atingir a perfeição do existir coisificado dos objetos, sem conseguir obter êxito.

Vemos então em todo o texto o choque com o próprio existir. Virgínia a cada instante se afunda em profundas reflexões sem palavras buscando perceber o que sente e como aquilo pode ser explicado. A liberdade é pura angústia, e quando ela abandona a cidade e o amor de seu namorado Vicente, sentimos que ela é escrava de sua própria liberdade, que ela é condenada a ser livre. Sem poder se impedir de agir livremente, ela recai em outro paradoxo ainda mais desesperador do que o de ser escrava de sua própria de seu próprio ser livre: ela tem medo do futuro, tem medo do desenrolar do tempo, tem medo que sua liberdade a leve a perder ou o amor e a certeza da família afundada em suas convenções sociais, ou o amor paixão ardente de Vicente. É a angústia em seu estado mais puro.

Com isso, o clima de realismo mágico do romance/poema em prosa volta-se para o próprio viver. Existir é algo absurdo, cruel, cheio de jogos de sensações e pensamentos. A opacidade de viver é algo a deixar a todos nós atônitos e todos, mesmo os mais simplórios seres, temos dramas profundos e momentos nos quais nossa angústia no invade e torna tudo mais dolorosamente vivo.

Os livros de Clarice, como eu disse acima, são engajados com essa realidade humana vivente em todos nós. Se outros autores, como Dalcídio Jurandir ou Guimarães Rosa, falaram do homem universal dando bastante espaço para o seu espaço geográfico; ou outros como Sartre e Simone mostraram a complexidade do existir a partir de ações humanas que por si só comandavam e contavam a história em belos jogos narrativos; Clarice, por sua vez, prefere pegar sua lente ontológica e focar no próprio sentir, na própria confusão que permeia todo o ato de viver.

Virgínia, como todos nós, queria ter a paz das coisas. Queremos ter um sentido pleno, um sentido repleto de uma possibilidade justificadora. Ela não tem isso, nem ninguém tem. E nunca ninguém terá. Resta fazer da falta de sentido, da pura liberdade angustiadora, o motivo central de nossa vida. Resta fazer da procura uma busca, como diria Fernando Sabino, e andar por essa estrada infinita sem motivos nem razões, apenas pelo prazer de viver.

O lustre então é um livro sobre a revolta humana, sobre o gozar a realidade com um certo ar erótico, com uma entrega plena a cada segundo. Sabendo gozar até mesmo do medo que se sente gozando a vida. É mais uma vez Clarice mostrando como o ser humano se revela enquanto nada de ser livre em cada contexto que se lhe apresenta. E isso, mais do que a bela forma de narrar típica de seus textos, é o que garante a grande beleza de seus relatos.



Comentários

Deus Carmo disse…
Muito bom seu trabalho, mas juro que não encontrei qualquer engajamento de Clarice em suas obras, não que eu seja ou deixe de ser favorável ao engajamento na obra de arte, mas que todo e qualquer personagem, como a pessoa em carne e osso, vive em sociedade, significa dizer que ignorar este fato é, de certa forma, alienação, porque ninguém vive em uma redoma de vidro. Reconheço que Clarice Lispector é uma das maiores escritoras do século XX, mas dizer que seus personagens se inserem em um contexto social, sinceramente, com todo respeito, é demais. No meu Noite em Paris que público no blogue de mesmo nome, eu tento evitar o panfletismo, mas não furto de colocar meus personagens dentro dentro contexto social espero que tenha alcançado meu objetivo.

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