Lima Barreto




Embora, desde a morte de Lima Barreto em novembro de 1922, muita coisa tenha mudado em torno da sua figura e da sua obra – por exemplo, há um número considerável de estudos desenvolvidos e em desenvolvimento nos programas de pós-graduação no Brasil que entre outras funções, injetam novas correntezas de sentidos em torno da escrita e lança novos olhares para sua literatura, assim como reforçam e ampliam o seu alcance – mas, o status a que foi reduzido, na iminência das primeiras críticas, isto é, o epíteto de marginal, ainda é constantemente reforçado e ao que parece o escritor e o seu trabalho estão distantes em sair desse círculo vicioso. Evidentemente que isso não desmerece – apesar de já ter tido esse papel nos tempos idos – não desmerece em momento algum o significado e a importância que tem o trabalho de Lima para o cenário literário nacional. De modo que, o termo ‘marginal’ lhe dá é mais curiosidade em saber do escritor e como os sentidos nascentes a partir do termo se constituem na considerável obra por ele produzida.

É fundamental pensar que sua ‘marginalidade’ é totalmente desfigurada quando compreendemos que seu projeto literário esteve em sintonia com a linha desenhada por antecessores como José de Alencar e Machado de Assis no sentido de pensar o Brasil e a formação de sua identidade. O que acontece a Lima Barreto é que o lugar de onde vem o escritor – como é comum na maioria dos romancistas – tem forte influência na sua obra, afinal, como já foi dito reiteradas vezes ninguém pode falar com propriedade daquilo que não viveu. Lima Barreto não se desfilia do seu lugar e propõe mostrar um Brasil que se esconde, porque até então o urbano desenhado pela literatura ainda era bastante retocado com certo verniz para mostrar um país a altura daqueles que por longa data tiveram larga influência na nossa literatura. Expor assim a nu nossas cicatrizes nunca foi um exercício aceitável à primeira vista; disso sabemos. É mais fácil irmos pelo brilho do verniz. Mas é graças a Lima Barreto, e só por isso já se mede sua inquestionável capacidade, que temos a possibilidade de uma visão mais acurada sobre nós mesmos.

A paixão pelas letras vem desde cedo. Conviveu com elas desde as formas tipográficas, instrumentos de trabalho de seu pai que era tipógrafo na Imprensa Nacional, aos estudos com mãe, professora da rede pública de ensino e com quem aprendeu suas primeiras letras. Mestiço de nascença, o sonho de Lima era a Engenharia, entretanto. Ainda foi aluno na Escola Politécnica, depois de cumprir os estudos básicos no Ginásio D. Pedro II, graças ao seu padrinho de batismo, mas teve de abandonar o curso porque seu pai foi levado para um manicômio e restou-lhe como filho mais velho a responsabilidade pelo sustento do restante da família. É quando vai para a imprensa estudantil; a família muda-se para o subúrbio do Rio de Janeiro; e Lima Barreto assume um cargo na Secretaria de Guerra depois de ser aprovado num concurso público.    

Depois que se estabelece como funcionário público é que dá início ao primeiro romance – Clara dos Anjos, que só virá ser publicado em 1948, anos depois, portanto da sua morte de sua morte. Depois da primeira versão desse romance, ele começa a trabalhar no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, que é de fato sua primeira obra considerável publicada, não aqui no Brasil, mas em Portugal. Sem largar a imprensa, Lima Barreto publica matérias para o Correio da Manhã, Jornal do Comércio, Correio da Noite, A noite (onde publica o folhetim Numa e a ninfa), a revista Fon-Fon e, com amigos, lança em fins de 1907, a revista Floreal, que sobreviveria com quatro números apenas.

O romance seu mais conhecido – Triste fim de Policarpo Quaresma – começa a ser publicado em 1911, em folhetins no Jornal do Comércio, onde escreve, e também na Gazeta da Tarde, depois de ter iniciado o trabalho Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, Antes da versão em livro, sai, em 1912, dois fascículos de Aventuras do Dr. Bogoloff, além de dois outros livretos de humor, um deles pela revista O Riso. Por essa época inicia uma série de crônicas diárias no Correio da Noite e na revista Careta, em artigos políticos sobre variados assuntos. Na imprensa, ainda escreve para o semanário político ABC.

Cinco anos depois do primeiro folhetim Triste fim de Policarpo Quaresma é que vem a lume em livro romance. No mesmo ano organiza sua primeira antologia de contos em que sê textos como "A Nova Califórnia" e "O homem que sabia javanês"; os dois trabalhos, apesar de sem muito alarde, têm um boa acolhida por parte da crítica. Na vida pessoal, é notório os agravantes decorrentes do vício pelo álcool. Apesar disso, em julho de 1917, entrega ao seu editor, J. Ribeiro dos Santos, os originais de Os Bruzundangas, que será publicado somente em 1922, um mês após a morte do autor.

Repudiado pela Academia Brasileira de Letras que sequer acolhe seu pedido de inscrição mais um agravante atravessa a vida do escritor: é diagnosticado com epilepsia tóxica e imediatamente aposentado. Depois de rever os originais de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá é editado por Monteiro Lobato. O romance reacende a boa crítica, o que lhe impulsiona, pela segunda vez, a inscrever-se a uma vaga na ABL; desta feita, consegue ser aceito, mas não é eleito. Permanece publicando textos menores em mídias menores, como a revista Hoje e Careta, até sua morte.

Depois de uma forte crise nervosa é internado no hospício em 1919. Um ano depois concorre ao prêmio literário da Academia Brasileira de Letras para Gonzaga de Sá. O livro recebe apenas menção honrosa. Publica o volume de contos Histórias e sonhos e entrega ao editor F. Schettino, seu amigo, os originais de Marginália, reunindo artigos e crônicas já publicados na imprensa periódica. A última antologia ficaria, no entanto, perdida, sendo publicada somente em 1953.

Ainda tentará vaga na ABL, mas desiste alegando motivos particulares e íntimos. Reúne num só tomo sua maior produção na imprensa – que vai de 1918 a 1922 – e entrega ao editor sob o título de Bagatelas; o livro, como Marginália permaneceria inédito até sua morte. Um ano antes de morrer volta a Clara dos Anjos  e publica na revista O Mundo Literário publica o primeiro capítulo, "O carteiro".

Com a saúde cada vez mais delimitada, o escritor não publicará mais nada desde então. O que se segue são os vários inéditos recusados pelos editores; a obra integral – 17 volumes compreendendo até toda a sua correspondência, ativa e passiva – é organizada e publicada graças ao esforço de Francisco de Assis Barbosa, Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença.

“Elaborada sob o signo do inconformismo e orientada pelo ideal de uma literatura militante, a obra de Lima Barreto expõe ao mesmo tempo as agudas contradições da sociedade brasileira dos primeiros anos da república e as agruras da vida íntima do escritor, cuja biografia é o sintoma vivo daquelas mesmas contradições que alimentam os seus textos.” – assim considera Manoel Freire Rodrigues que na sua tese de doutorado percorreu a obra do escritor a partir de sua literatura intimista, como as cartas, os diários e outros escritos. Para Rodrigues “se os diários revelam a dimensão mais íntima e pessoal de Lima Barreto, oferecendo um roteiro biográfico para a leitura de sua ficção, os escritos circunstanciais constituem uma espécie de roteiro ideológico em que o Autor, por meio de textos militantes, denuncia as iniquidades da sociedade brasileira do seu tempo.” A obra de Lima Barreto “alimentada pelas injunções históricas imediatas e pelas circunstâncias biográficas do romancista” – de acordo com a vida insistente que levou como é patente nesse breve itinerário que aqui fizemos, se constitui numa escrita de “protesto mudo dos vencidos, modulada pela revolta do injustiçado e a melancolia do fracassado”, como considera Manoel Freire. Esse trabalho do professor cujo título é Revolta e melancolia – uma leitura da obra de Lima Barreto encontra-se em fase de editoração e em breve estará disponível em livro pela Editora Annablume.

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