Jean-Paul Sartre


O quanto precisamos ainda de Jean-Paul Sartre. Este poderia servir de título a um texto que vim ensaiando escrever por esses dias sobre a importância da obra do filósofo francês. Ele não escreveu uma obra ensaística apenas: Sartre redigiu um mundo restituidamente pensado por um olhar que ficou conhecido de todos por existencialismo. Foi a partir desse olhar que encontrei tantas semelhanças, quanto ao escrito e ao escritor, entre ele e José Saramago. Gosto de pensar que Sartre foi um dos primeiros intelectuais a acenar e cumprir com o acenado de que o verdadeiro trabalho do intelectual não está apenas dentro do gabinete, mas nas ruas. Essa quebra de fronteiras, evidentemente, é fruto de uma cultura francesa – já foi dito tantas e tantas vezes que os franceses têm vasto culto às bibliotecas e, para compreender sobre o que se passa ele tem na bibliografia um suporte para tal – mas terá sido de uma importância extrema porque renegocia com a própria sociedade qual o papel dos que pensam numa situação em que o indivíduo pensante é ora apagado pelo epíteto de vida fácil e do que não tem o que fazer ora é produto apenas de pequeno grupo que pouco ou nada contribui com o desenvolvimento técnico do espaço social. O desenvolvimento dessa ideia, entretanto, ficará para outra oportunidade porque vale a pena antes de falar do legado, falar como se deu esse legado. No texto a seguir o professor Carlos Eduardo Ortolan destrinça esse lugar. O texto integra o dossiê sobre literatura francesa editado pela revista Entrelivros.

Condenado à liberdade

Romancista, contista, dramaturgo, memorialista, crítico literário, jornalista, filósofo, Jean-Paul Sartre (1905-1980), talvez o último titã do pensamento francês, escreveu em uma multiplicidade imensa de gêneros literários, nos quais atingiu elevado grau de excelência.

Expressões advindas do seio do pensamento sartreano popularizam-se e tornaram-se lugar comum, sendo empregadas nos registros mais diversos (e, na maior parte dos casos, de forma indevida). Como Marx, Nietzsche e  Freud, Sartre acabou por pagar o preço da própria fama, e assim termos como “existencialismo”, “engajamento”, “liberdade”, e “má-fé” são utilizados, no mais das vezes, em contextos que pouco ou nada têm a ver com o pensamento original do filósofo francês. Essa vulgarização, entretanto, é a contraparte negativa de um dos mais influentes autores do século XX, cuja esfera de ação ultrapassou os limites do pensamento acadêmico, chegando à política, ao jornalismo, ao cinema e às artes.

Originariamente inspirado pela fenomenologia de Edmund Husserl e Martin Heidegger, que influenciariam sua primeira obra de fôlego, O ser e o nada, Sartre se encaminhou para um desenvolvimento inteiramente original, posteriormente incorporando elementos do marxismo e da psicanálise. A filosofia de Sartre, como não poderia deixar de ser, recebe influências da angústia e do vazio espiritual de seu tempo. Recorde-se que ela se constrói, em grande parte, sob os ecos das duas guerras mundiais, eventos de um grau de destruição e barbárie inauditas, que deixaram marcas profundas em toda a produção intelectual e artística do período, da poesia de T. S. Eliot aos quadros de Picasso, passando pela música de Schönberg e pelo nosso Carlos Drummond de Andrade da Rosa do povo, só para citarmos alguns exemplos.

Universo sem Deus

“Se Deus não existisse, tudo seria permitido”: a famosíssima frase de Dostoiévski (um cristão angustiado, para quem a existência de Deus é um problema gravíssimo) é um bom ponto de partida para o ingresso, mesmo sumário, em algumas ideias de Sartre. Vivemos, para o agnóstico Sartre, num universo sem Deus. Ora, a divindade, para os pensadores deístas da tradição, é garantia e fundamento de sentido do universo e da existência humana. Deus é o apoio eterno da imutabilidade das leis físicas, do funcionamento perene da maquinaria universal, da permanência dos processos da natureza (e recorde-se aqui imagens, bem ao gosto dos filósofos sistemáticos do século XVII, de um Deus-relojoeiro, artífice  e mantenedor do engenho do mundo). Mas se Deus garante a permanência das leis naturais e funda a estabilidade do universo, ele também dota a existência humana de sentido. As leis morais, as direções a serem tomadas na vida derivam do fato de que ele existe. Daí a máxima acertadíssima de Dostoiévski que, caso Deus não exista, tudo é permitido, ou seja, na ausência de Deus, a questão do sentido da existência e da ética, é a do código de conduta moral tornam-se questões exclusivamente do âmbito humano.

Esse é o ponto de partida do pensamento de Sartre. Não há sentido a priori para a existência, fornecido por uma divindade infinitamente sábia e bondosa. Estamos solitários e entregues à própria sorte, e devemos extrair, por esforço próprio, um sentido para a existência. Na formulação de Sartre, no ser humano, ela “precede a essência”. Explicaria Sartre em conferência proferida em 1946: “Se Deus não existe, há pelo menos um ser, no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e esse ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significa então que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente é nada. Só depois será, e será tal como a si próprio se fizer”.

Estamos aqui no cerne do argumento de Sartre. O homem primeiro existe, como realidade física, quase em estado de objeto. É inicialmente “nada”, ou seja, ainda não se realizou como essência, uma vez que esta depende de uma “escolha” (outro conceito crucial para o pensamento existencialista).  O homem, é portanto, essencialmente liberdade. A natureza humana é livre, pois não somos nada antes da escolha. Somos os responsáveis únicos e diretos pelo nosso destino. Na formulação célebre de Sartre, estamos “condenados à liberdade”. Isso porque “escolher não escolher” é evidentemente carente de sentido, uma impossibilidade lógica. Dada a inexistência de Deus e, portanto, de um sentido da existência a priori, este se dará a partir de nossas escolhas pessoais. Nossa vida terá o sentido que lhe destinarmos, começando no momento em que desenvolvermos nossa essência, como resultado de nossas escolhas.

A não-aceitação de nossa liberdade essencial e constitutiva é associada por Sartre, ao mecanismo da má-fé que o sujeito não se reconhece como essencialmente livre, ou seja, como dono de seu destino e responsável por sua condição. Esse grau de liberdade absoluto, que chega perto de neutralizar outros componentes, como as determinações históricas, viria a constituir um grave problema para a ética sartreana, especialmente quando da sua adoção do marxismo. Com efeito, é difícil imaginar como combinar um conceito de liberdade tão universal e essencialista como o do primeiro Sartre, com as determinações históricas concretas sustentadas pelo materialismo dialético marxista. Sartre tentaria, no final da vida, reunir os conceitos em obras como Questão de método e Crítica da razão dialética.

Defensor do “engajamento” nas artes, ou seja, de que a obra de arte fosse, simultaneamente, realização estética e formal e sustentáculo ideológico das convicções do autor, a parte ficcional do trabalho de Sartre segue, de maneira absolutamente coerente, a ideia de arte engajada. Em romances como A idade da razão, Sursis, Com a morte na alma e na peça de teatro Entre quatro paredes Sartre produziria uma literatura de altíssimo nível (que acabaria por conferir o Prêmio Nobel, por ele recusado), na qual se desenvolvem os princípios da filosofia existencialista.

Romance existencialista

A náusea talvez seja a forma mais bem-acabada de romance existencialista já produzido. Nele, vemos a narrativa das aventuras (desaventuras?) de Roquentin, pequeno intelectual burguês, que viaja para uma cidade do interior para realizar um projeto histórico de relevância ínfima: escrever sobre um obscuro personagem, o Marquês de Rollebon. Enfastiado, reconhecendo o absurdo fundamental da existência (outro tema muito caro aos existencialistas, especialmente presente na obra de Albert Camus), Roquentin escreve uma espécie de diário, no qual anota suas impressões sobre o cotidiano insípido e sobra sua própria melancolia e sensação de inutilidade. A veia sarcástica de Sartre desponta ao traçar o personagem do “autodidata” que pretende ler toda a biblioteca da cidade, em ordem alfabética. Tal busca insana pela totalidade do conhecimento ridiculariza o gosto pelo academicismo e pela erudição estéril de parte da intelectualidade francesa. A “solução”, se é possível utilizar o termo como justeza, é de natureza estética. Subitamente, Roquentin ouve um disco antigo, uma velha gravação de blues (Sartre sempre um entusiasta da arte americana, do cinema, do romance de Falukner e do jazz). A partir da audição do disco, uma nova camada de experiência se abre para o atormentado Roquentin, que assim é salvo por intermédio da arte.

A arte, aliás, ocuparia o centro das atenções da produção final de Sartre, que escreveu estudos de crítica literária fundamentais, como o imenso O idiota da família, sobre Flaubert, no qual o filósofo desenvolveria o conceito de “neurose subjetiva”, e os dedicados a Genet e Baudelaire.

Última grande figura de intelectual público, polemista, polígrafo e trabalhador incansável, Sartre representa o homem de letras sempre atento e partícipe das questões de seu tempo. Algo que, para nós, lamentavelmente, tornou-se impossível de encontrar.

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