Intocáveis, de Eric Toledano e Olivier Nakache

Por Pedro Fernandes



Quando saí da lotadíssima sessão de Intocáveis, que segundo soube, repetiu o êxito de público na segunda exibição no Festival Varilux de Cinema Francês, ouvi de alguém da plateia que este foi o filme que melhor já havia assistido de todos os que integravam a programação do festival. Não devo concordar diretamente com essa constatação, mas a partir dela vou procurar entender seu sentido vendo alguns aspectos que faz do longa de Toledano e Nakache despertar no telespectador a importante observação de melhor filme do festival.

Uma razão parece ser que este filme muito se aproxima dos tradicionais dramas de superação hollywoodianos que tanto já vimos que estamos já intocáveis (permita-me o trocadilho). Tendemos a aceitar melhor aquilo que já somos adestrados a ver. A primeira vez que entra em cena o ator Omar Sy, com sua incivilidade numa entrevista para contratação de um cuidador para um milionário tetraplégico, associei logo com outra especialidade hollywoodiana, que é a de colocar ao lado de um herói branquelo e sisudo, um negro de piadas fúteis. Isso foi desfeito a medida que o filme avançou. Pelo menos para mim. Mas, para boa parte do público, talvez não, e isso deve ser tomado como mais uma razão pelo sucesso de bilheteria do filme.

E, claro, está em questão aqui, a ideia de superação. No atual estágio para que as coisas têm evoluído, qualquer coisa que se encaixe no perfil do superável é já motivo de choro fácil e contágio direto com a história narrada. Pois bem, Intocáveis teria ainda outro fator: a nossa incapacidade de sorver a ficção porque a realidade tem se apresentado tão pesada nos últimos tempos que fez desenvolvermos um gosto pelas histórias que começam com um “baseado em fatos reais”.


A ideia para este filme surge a partir de 2003, quando Toledano e Nakache assistiram a um documentário sobre a vida de Phillippe Pozzo di Borgo e decidiram adaptar sua história para o cinema. Philippe é vivido em Intocáveis por François Cluzet; é o milionário tetraplégico que tem a curiosidade de contratar Driss, a personagem de Omar Sy, como seu cuidador. Driss, diferente da personagem real, que era o argelino Abdel Sellou, é imigrante africano, desempregado, como parecem estar grande parte das personagens dos filmes franceses que absorveram ao limite o estágio de crise constante que assola a Europa nos últimos anos, e sobrevive dos benefícios de seguro desemprego concedidos pelo governo. É da disparidade entre os mundos que se alimenta o enredo do filme.

Uma ligeira incursão pelo gesto, com olhar capital: estaria aí embutida a ideia de que não tem o imigrante culpa nenhuma pelo atual estágio em que se encontram os países europeus, numa era em que os índices de xenofobia estão também em alta pela disseminação da ideia de que o imigrante rouba as chances e os direitos dos que nasceram e vivem em tal ou tal país. Talvez fosse mesmo a saída para a crise transformar a realidade dos mais necessitados que, certamente são os trabalhadores, aqueles que querem um rumo digno para suas famílias, ao invés de se preocuparem em saldar da quebra o que falido/paralisado já está – os grandes conglomerados econômicos.

Dessa ligeira incursão surge algo que faz de Intocáveis para além de todos os clichês desenhados por Hollywood como roteiro para arrancar bons trocados do público: uma ligação direta assumida entre a arte e a sociedade, propondo, inclusive, sem o pedagogismo ou o panfletismo, saídas ou propostas de reflexão em torno dos modos de ser e estar no mundo do europeu. A confluência de culturas e de comportamentos compõe uma dicção rara para filmes do tipo, a ponto de a ideia de superação ser não mais que um espectro que ronda o universo das duas personagens centrais, porque, afinal não parece ser o interesse dos diretores falar do processo de driblagem das limitações, mas, sim, a sua compreensão e convivência com aquilo que nos é imposto como limite.


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