Para Roma com amor, de Woody Allen

Por Pedro Fernandes



Aí está um filme de Woody Allen, dentre os dois turísticos que já fez, desde quando deixou Nova Iorque pela Europa, Vicky Cristina BarcelonaMeia-noite em Paris que reafirma sua capacidade de reinvenção. Para Roma com amor é, antes de uma ode à cidade italiana, não se limita a um período específico da história em que a cidade veio tornar-se um dos encantos do velho continente. No filme anterior, ele escolhe o exato temporal dos anos 1920, período em que todos os intelectuais em estágio de frustração, como a personagem central do enredo, iam ter em Paris o lugar ideal para inspiração, período, portanto, que alavanca a fama da cidade luz. Talvez porque a cidade tenha mesmo tido apenas isso de significante e de lá pra cá não tenha dado satisfações ou garantias do epíteto que vende. Em Roma parece que tudo ainda pulsa e tem “mais história”. Não estamos mais diante de alguém “transportado” de um lugar para se fazer noutro, como em Meia-noite em Paris, mas sim de personagens até certo ponto ligados ao seu lugar de origem, pelo menos em dois dos quatro nichos da trama e, até o próprio narrador, categoria sempre viva nos filmes de Allen é um simpático guarda de trânsito, que, diferente dos outros narradores, apenas encaminha as cenas para desaparecer logo em seguida. A pluralidade de histórias a contar está, nesses quatro universos distintos que, em momento algum se cruzam, para reforçar o quanto há coisas que dão em cinema em Roma, inclusive o próprio cinema e, detalhe, sem perder o olhar do turístico, olhar que é sim o leve toque autobiográfico característico de Allen.


No primeiro núcleo, é o próprio diretor quem reaparece na atuação. Pai de Hayley, jovem americana que, de férias em Roma, encontra-se ao acaso com o italiano Michelangelo e está para casar. Allen interpreta um importante representante da indústria fonográfica já em vias de se aposentar, mas sem se acostumar com a ideia, e um metido a montagens avant garde que nunca fizeram sucesso. O contato com as interpretações de chuveiro do pai de Michelangelo o fará reavivar a ideia por uma montagem musical de Pagliacci, responsável, depois da incrível atuação de Allen por momentos de boas risadas. Os momentos desse núcleo são representes de uma crítica aos estereótipos sociais e culturais feitos pelo estadunidense à Itália e, consequentemente, ao próprio meio de vida nos Estados Unidos, sempre a primar pelo lucro e a felicidade verde do dólar.  


De boas risadas é também o núcleo da família Pisanello, típica família de classe média romana, que tem a vida virada de ponta cabeça, quando Leopoldo no cumprimento de sua rotina diária é descoberto como a mais nova celebridade. O instante evoca a ideia da farsa, comumente associada a Itália e não deixa de ser lugar para a interpretação da fama pela fama ou de como se monta uma figura pública que no fim de tudo tem sua rotina tão corriqueira quanto a de qualquer pessoa.



Farsa que se completa no núcleo Milly e Antonio. Ela uma professora abobalhada (até de ponto os bobos são bobos?) do interior da Itália, recém-casada com um nome ascendente de família tradicional em Roma. Milly perde-se por Roma e viverá um encontro com uma estrela do cinema italiano até que todo encanto do momento vivido se desfaça no meio de um assalto; da parte dele, uma prostituta encarnada por Penélope Cruz erra de quarto depois de contratada a servir sexualmente o hospedado no recinto. No meio da confusão e tentando encontrar uma solução para que ela saia em retirada o quanto antes, a família do rapaz flagra os dois na cama e daí por diante será o jogo de mal-entendidos só resolvidos no fim da trama.


E, por fim o terceiro núcleo apresentado no filme com um estudante de arquitetura recém-casado com Sally. O casal recepcionará Monica uma estudante de artes cênicas em crise amorosa que vem ter uns dias em Roma e o experiente arquiteto John. A entrada dessa última personagem reaviva aquilo que aparece em Meia-noite em Paris como realismo fantástico. Lembremos aqui que nesse filme a personagem principal tinha suas orgias intelectuais depois de à meia-noite ser transportado para os gloriosos anos 20. Aqui, em Para Roma com amor é que logo percebemos pela presença insistente de John a dirigir todas as cenas do triângulo amoroso que ou o casal e a Monica são resquícios mentais de John que sai de perto da esposa e vai caminhar pelas ruelas de Roma até dá com uma encruzilhada próximo onde morou na juventude enquanto fazia arquitetura ou é John autoprojeção do estudante no futuro, gerando uma indecisão ou impasse temporal que pode ser resolvido corretamente pelos dois ângulos.

Por fim, vale ressaltar do profundo interesse e entendimento que Allen tem em relação ao cinema enquanto arte e, por isso, a necessidade que tem de se alimentar daquilo que as outras têm a oferecer; se em Meia-noite em Paris escolhe a literatura como uma das artes como intermédio ao cinema, agora, escolhe a ópera, um dos símbolos italianos e trabalha com a maestria medida e já conhecida um filme que tem um tom muito próximo da novela, fugindo à risca do gênero que mais pareceu familiar a Allen, a crônica. Para Roma com amor o sujeito é a própria cidade e o objeto de visão elegido pelo narrador é a sua corriqueirice e a cultura, pressuposições colhidas dos círculos que o cineasta elege com o interesse em conhecê-los e considerá-los criticamente. Cria com isso um dos melhores filmes para a sua coleção dos já consagrados.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

A bíblia, Péter Nádas

Palmeiras selvagens, de William Faulkner

Boletim Letras 360º #574