Mais uma página da novela Kafka




Já havia comentado por aqui sobre possíveis inéditos de Franz Kafka e da ideia não levada a cabo pelo amigo e editor Max Brod de queimar todos os textos do escritor não publicados tão logo ele morresse. Se a desobediência de Brod beneficiou a nós leitores porque o escritor quando morreu só havia deixado alguns contos e uma novela publicados e hoje conhecemos dele mais que isso, por outro lado, formou-se uma história digna do próprio escritor theco. Ironicamente, Kafka previa esse imbróglio? Talvez todo escritor saiba da briga que pode causar entre herdeiros por causa de uns papéis valiosos. Mas, vamos lá.

É que já entra para três anos que se descobriu os tais manuscritos de Kafka num apartamento em Tel Aviv. Eva Hoffe, no alto dos seus 70 anos e o estado de Israel se colocam num ringue pelos direitos aos papéis. O arquivo pode conter cartas, desenhos e, até manuscritos inéditos de Kafka, vigiado ao longo de muitos anos pelas mulheres da família Hoffe que até então têm se revezado na proteção do material, como observa o jornalista Ofer Aderet, do periódico israelita Haaretez. O jornalista acompanha o processo judicial há pelo menos três anos sobre a posse do arquivo e para ele não deverá tardar um mês para que os tribunais emitam uma decisão por uma das partes envolvidas, Eva ou a Biblioteca Nacional de Israel, representante do estado, que pede os direitos de investigação e posse sobre os achados.

Agora, a pergunta que todos devem se fazer é como esses arquivos foram parar em Tel Aviv. Anat Perry, uma das pesquisadoras acadêmicas sobre a obra de Kafka e defensora do estado israelita sobre os achados diz que tudo começa com uma mala marrom carregada por Brod. Em 1939, ele fugiu da Thecoslováquia para a British-run Palestine (agora Israel e os territórios palestinos), levando sempre consigo todos os papéis coletados do amigo Kafka. Em Tel Aviv, Brod teve um relacionamento com Esther Hoffe, a quem sempre se referiu como secretária, embora a maioria acreditasse que os dois mantinham um caso amoroso debaixo dos olhares do marido e das duas filhas de Hoffe.

Brod morreu em 1968 e deixou os papéis para Esther Hoffe no intuito de que ela os doasse "à Universidade Hebraica de Jerusalém, à Biblioteca Municipal de Tel Aviv, ou a outra instituição em Israel ou no estrangeiro"; mas, ela não acatou as ordens de Brod e deixou os tais documentos para Eva e Ruth, as suas duas filhas. Ruth morreu a um mês e hoje, apenas Eva está viva e representa a família no caso. Ela nunca se casou, vive com seus gatos na Rua Spinosa e raramente é vista em público. Pelo comportamento, Perry diz que Eva parece deprimida principalmente depois da perda da irmã e a própria teria se confessado com certo ar depressivo o fato de que nunca tinha se casado, nem tido filhos e o único legado que lhe restava era o desses papéis.

Perry diz entender o estado de Eva, mas concorda que esse material nunca lhe esteve destinado a se tornar legado familiar. Já o advogado de Hoffe rejeita a visão de Perry alegando o interesse em preservar algo deixado por Brod para a família Hoffe e diz que o estado de Israel tem agido com agressividade após ter ido a casa dos Hoffe para pressionar Eva a entregar os papéis. Ele também acredita que é interesse de Israel associar a imagem do escritor a um dos grande nomes do país, o que lhe parece tal conexão um absurdo. Para ele, nem Israel nem outros países poderão ter o respeito que os papéis de Kafka merecem ter.

Para Aderet, o jornalista do Haaretz, concorda que se há alguém a quem deva pertencer o material é para o legado do escritor theco. Mas, veja o que preservar o legado do escritor se a mãe e as duas praticamente vilipendiaram todo o espólio: Esther chegou a vender o manuscrito original de O processo por uma fortuna aos Arquivos Nacionais da Alemanha (documento é que também reclamado noutro processo da justiça israelita); e os documentos foram vendidos a colecionadores do mundo inteiro e outros espalhados em cofres em Israel e na Suíça. Um dia esses papéis estarão reunidos? Quem se habilitará comprar outras brigas maiores que as das irmãs Hoffe?

Kafka não poderia descansar em paz quando dois polos em Tel Aviv, uma cidade que ele nunca visitou em vida, lutarem por uma coisa que não pertence, de fato, nem a um, nem a outro. Situação que não outro, senão Kafka poderia escrever melhor sobre.


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