Ler a Odisseia (Parte V)

Por Pedro Fernandes

Ulisses cega o Ciclope Polifemo

Se fosse o caso de chamar aqui o que faz da Odisseia o grande texto da Literatura me guiaria novamente, como já fiz para outras ocasiões, pela ideia já convencional entre todos os que têm no trato com a escrita seu trabalho e diria que é a linguagem. Nos dois planos: no modo como o enredo desse longo poema é montado, seja pela posição assumida pelo Ulisses no correr da narrativa seja pelas digressões aí operadas com o intuito de suspender a ação e provocar no leitor aquele sentimento do suspense típico da narrativa contemporânea seja pela perfeita conjugação entre dois métodos narrativos – a descrição e a narração; e acresceria ainda o entrelaçamento de narrativas que compõem o enredo maior, que como é sabido, além do regresso de Ulisses para casa, também está aí no mínimo outros três veios narrativos, como o movimento e decisões dos deuses, a viagem da procura de Telêmaco pelo pai e as tramitações em casa de Ulisses pela presença constante dos pretendentes à mão de Penélope. E o efeito nada convencional de narrador e personagem fundirem-se como ocorrerá nos cantos IX e XII. Noutro plano, são as movimentações internas do herói, sustentadas e-ou guiadas pelo uso pleno da linguagem.  

Noutra ocasião comentei acerca da presença do tema da memória nas ações acontecidas quando Ulisses desce ao Hades. Daqui, é possível cogitar a hipótese de que todo o empreendimento do herói é na construção de sua glória individual ou a preservação de sua memória contra o esquecimento. Essa observação não é nova, mas é pertinente para o entendimento do poder da linguagem na construção interna desse herói na Odisseia. O interesse individualista de se suster enquanto figura perene na história é o que o leva a cometer o ato de desobediência aos deuses para um mergulho no desconhecido. E esse ato fundador bem como a elaboração dessa individualidade são produtos linguísticos do herói. Do último ato, exemplos não faltam e retomo só para suster o que estou propondo, o já referido episódio do canto das sereias: é Ulisses quem elabora o plano de conversão da ideia de que somente ele deve ouvi-las e chega a convencer os da sua embarcação a amarrá-lo num mastro para o desempenho desse ato.

No canto IX, quando Ulisses revela sua identidade ao rei Alcínoo e passa a contar sua história, é a desenvoltura com a qual sustém seu relato o que determinará a construção de um tom amistoso entre o forasteiro e o rei dos feácios, que, por fim, reconhece no herói a figura de um verdadeiro aedo porque sua linguagem teria o plano e a forma que apontariam para a verdade vivida. O domínio do plano linguístico elevado dá ao herói uma faceta específica que faz diferir do comum. E se pensarmos nalguns dos heróis da nossa história? Dificilmente, posso mesmo arriscar, daremos com um que não tivesse no uso da linguagem uma dimensão importante da existência heroica.  

Convém lembrar aqui ainda daquele momento no qual Ulisses se autonomeia por Ninguém a fim de dá continuidade com seu plano de enganar e vencer o Ciclope. Além da habilidosa capacidade de transmutação identitária – coisa imitada certamente dos deuses – tem aí a elaboração do caráter polissêmico da linguagem. Ainda nas astúcias linguísticas, como não lembrar o extenso jogo erótico e tensional assumido quando do encontro de Ulisses com Calipso?

Isso aponta para uma conclusão de que toda astúcia do herói é produto de uma habilidade linguística para a elaboração de estratégias de sobrevivência às forças do acaso seja como inventor seja como manipulador. A capacidade de Ulisses em se mover com aparente facilidade nesse plano hostil do acaso é fruto de sua consciência de que a realidade é manipulável pela linguagem e sua plurissignificação é capaz de fazê-lo sempre original na sua forma e, portanto, capaz de se reinventar perante em infinitas possibilidades.


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