De quem é palavra?

Por Pedro Fernandes



Tenho impressão de que já comentei por aqui sobre, mesmo tendo já revirado outras postagens e não ter dado conta disso. E é por esta razão que vou ao tema. A questão tomou forma quando há poucos dias a Fundação José Saramago publicou nota em sua página oficial esclarecendo que um pronunciamento acerca da paternidade, mais especificamente, da relação pai-filho, não se tratava de pensamento do autor, tendo uma equipe consultado a fundo todos os escritos e declarações feita pelo escritor.

É que se tornou moda nas redes sociais, sobretudo no Facebook, que é o lugar cibernético mais frequentado nos últimos anos, o compartilhamento de frases feitas atribuídas a autores diversos. Assim como José Saramago moda é publicar William Shakespeare, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Caio Fernando Abreu, Mario Quintana, Pablo Neruda, Oscar Wilde e a lista vai multiplicando-se ad infinitum. Alguns saem em defesa da prática com a crença ingênua de que o que vale é o que está escrito e o resultado final incutido à pessoa leitora.

Mas, vamos com calma porque as coisas não funcionam muito bem por aí. As palavras não têm outro pertencimento senão ao do sistema do qual fazem parte. É verdade. Em algum lugar, algum teórico da linguagem terá dito que, tudo que é dito agora pertence a alguém em outra instância. Isto é, não há sentença original. E, em dias de múltiplas redes discursivas parece que os dizeres ficam ainda cada vez mais complexos de serem mapeados. Que o diga outro fenômeno recorrente: a multiplicação, nos bancos escolares do ensino básico e superior, da cópia indevida de trabalhos da internet, o que tem se tornado em muitos casos, dor de cabeça para muitos professores.

Bom, de fato as palavras não têm dono. E não há sentença original. Mas, o que vale é sim tanto o que está escrito como quem o escreveu. Nota-se que, quando o sujeito faz uso de palavras atribuídas às figuras comuns citadas acima, ele se beneficia do substancial nome do escritor que é sinônimo de clássico e intelectual. Usando de frases feitas deles, também, por via indireta, o usuário se contamina, sobretudo, da intelectualidade alheia, ainda que não tenha lido (o que nos 100% dos abusos se confirma) o autor citado. Isso é o que usuário crê.

Mas, voltemos à questão em si. Tudo aqui não passa pela propriedade tampouco pela originalidade da palavra. Passa por uma quesito de ética da palavra. Há sobre a linguagem um árduo e silencioso trabalho bruto e simultaneamente delicado que é o da escrita. Daí surge a relação de autoria que os sujeitos assumem diante desse trabalho. Cada vez que se publica algo que não pertence ao escritor X ou Y pratica-se um crime. E esse crime se dá por dois ângulos: no primeiro, atribuir o pensamento "rasteiro" a um autor clássico; segundo, atribuir o pensamento do autor X ao autor Y, ou vice-versa, instaurando a saga do-que-é-de-quem. Logo, citar por citar é um crime porque vilipendia a memória alheia e descarta o trabalho silencioso sobre a linguagem, que é o trabalho de quem escreve.

Diante do disse-me-disse tem surgido uma corrente que receita um antídoto contra o mal. Sabendo que ele surge de um mal maior - a falta de leitura - é que se criou a ideia, óbvia, mas saudável, do "só confiar naquilo que está escrito nos livros". E é justa. As pessoas querem se tornar inteligentes por osmose, mas, biologicamente isso é comprovadamente impossível. Não é repetindo frases feitas, não é andando com um livro debaixo do braço (o chamado leitor de sovaco), não é convivendo com pessoas metidas a intelectuais, que você se tornará inteligente. Fútil, sim. Em todos os casos futilidade absorve-se por osmose. Mas, inteligência só se adquire pelo conhecimento que está nos livros.

Isso é também uma questão de consciência. Antes de tomar a atitude de citar por citar pense quantas vezes preciso for e, quaisquer informação posta na web é suspeita para dizer sua verdadeira autoria. Confiar no livro é ainda a melhor alternativa.



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