Millenium - Os homens que não amavam as mulheres, de David Fincher

Por Pedro Fernandes



Quando saía do cinema ouvi uma pergunta-comentário de alguém que também saía: "Afinal, por que Os homens que não amavam as mulheres se o filme inteiro não se constata isso?" Perguntaria a essa telespectadora se ela realmente viu o filme de uma ponta a outra. É evidente que foco ou o centro do filme não se firma nas sessões de violência contra as mulheres, mas isso constitui a camada sobre a qual está sobreposta toda sua trama. E, por falar em trama, é ela a que faz desse um filme brilhante. Diria que, para o padrão dos filmes atuais, é mesmo sofisticada. 

Sem perder de vista, claro, também o padrão fotográfico da película de Fincher. Frio. E capaz de somente ele nos provocar a sensação de claustrofobia que, de certo modo, está aí presente. O cenário de tudo é a Suécia. O que um país de primeiro mundo, com índices sociais, de educação, saúde, democracia etc. no topo daquilo que os ranques classificam por índice de desenvolvimento humano tem a contar? Talvez seja pensando na velha máxima "nem tudo é perfeito e o que hoje é perfeito deve esconder no seu passado marcas difíceis de aturar", o que tenha feito Stieg Larsson, romancista sueco a compor a trilogia Milleniun (Best-Seller no mundo inteiro, mas o autor não viveu para ver todo esse sucesso), de onde David Fincher busca compor a trama de seu filme.

Pois bem, por baixo desse cenário se descortina grupos políticos corruptos, policiais igualmente e grandes empreendedores fora da lei (coisa que na cabeça de muitos brasileiros colonizados só existe em país de terceiro mundo, sobretudo, no Brasil). E as estatísticas encontradas em quaisquer dessas páginas de jornais que lidem com isso não deixam mentir, principalmente, quando o assunto são os fora da lei: quatro mil estupros num universo de 9mi de habitantes. Mesmo que a Suécia admita estupro qualquer violação sem consentimento da mulher, o número é ainda assustador. O cenário fica ainda mais sombrio quando Larsson coloca no epicentro da sua trama um assassino perigoso que atua na surdina a capturar mulheres e matá-las indiscriminadamente sem que ninguém saiba ao certo quem está por trás disso tudo o que o motiva alguém a fazer isso. Para afunilar a questão está sob júdice particular encontrar (de que modo seja) a filha de um patriarca e milionário sueco (Henrik Vanger). À frente das investigações, um jornalista em fim de carreira iminente por ter sido difamado por um opositor que mais adiante contrata para si Lisbeth.

Um parêntese aqui sobre o desenvolvimento da trama para falar dessa última personagem, que por si só, irrompe no filme como uma simples hacker contratada para um trabalho de investigação que tinha como foco justamente o jornalista. Lisbeth, mulher de nome variável quantas for as identidades necessárias de se assumir socialmente, não se situa no campo das femmes fatales comumente apresentadas no cinema hollywoodiano. Seu perfil é, demasiadamente contemporâneo: acusada de tentativa de homicídio do pai, vive sob tutela do Estado; tem, logo, sua independência ameaçada pela entrada do seu tutor num estágio de saúde vegetativa; e, para sobreviver, tem de aturar os desmandos de um tutor maníaco sexual que faz-lhe o diabo, até Lisbeth se torne dona da situação e mostre-se no seu estágio limite de fêmea dominadora da situação. O ser dessa new woman é da margem, portanto, e se movimenta às sombras; pálida anoréxica, sem sexo definido, espécie de filha da geração Lady Gaga. Produto de disfarce? Disso não sabemos, mesmo que a própria personagem admita a certa altura do filme ser assim geneticamente. 

Apresentada Lisbeth está também montada o desfecho para a trama. Não é difícil de deduzir que as coisas andarão - não tão bem - mas terão seu desfecho positivamente ao fim do filme. E o leitor, terá então percebido, que muitas são as histórias aí envolvidas e, cada uma, a seu modo, tem num pólo um homem que odeia o outro pólo, as mulheres: seja, o tutor violador de Lisbeth, seja o assassino de mulheres que, não será de pasmar, está situado entre os investigados pelo sumiço de Harriet, é essa a peça-chave da busca. O que causa aplauso a esse enredo de muitas histórias é que, cada uma delas, vai, à medida que o filme avança, obtendo seu pleno êxito. Sendo que todas elas ocupam o tempo necessário que deve ocupar dentro da história central. Isto é, o critério de evolução está bem seguido aí; Fincher digere tudo isso com fluência, interliga as várias histórias, os avanços e recuos, sempre ao sabor da tensão.  Evidente, e disso não podemos esquecer, há o romancista autor da obra, mas não podemos também esquecer daquilo avaliado pela crítica especializada que lê Fincher como o diretor mais adequado para essa adaptação tomando por base, primeiro, os filmes anteriores como Seven ou Zodiac, Fight Club ou Sala de pânico, segundo porque Milleninum já foi adapatado pelo cinema sueco e foi lá essas coisas de adaptação. Por fim, o trabalho de direção independe quase que totalmente do trabalho de quem escreve. Disso, todos sabemos.

Por tudo isso, Millenium - os homens que não amavam as mulheres é sim um filme inteligente, repleto de personagens interessantes e uma trama também no mesmo nível.


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