Fantasia não rima com hipocrisia (notas)

Por Pedro Fernandes


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Não faz tanto tempo assim que redigi dois textos tratando de uma nova fenomenologia na literatura (aqui, um; aqui, outro) vendo autores que se enquadram no mundo dos Best-Sellers, tipo Paulo Coelho, Augusto Cury, Dan Brown e, por aí vai. Pois bem, a necessidade me faz voltar a estes dois textos: primeiro para rever aquilo que eu afirmei como “fenomenologia” - termo que sempre foi usado como um derivado de fenômeno e, logo, totalmente desvinculado de uma proposição filosófica; e, segundo, para entender o que essa fenomenologia representa à formação crítica do leitor (aqui posso está sendo óbvio demais, é verdade, mas a questão oferece alguns caminhos não tão óbvios e que merecem ser vistos mais de perto). Antes, devo avisar aos mais desavisados, que não quero aqui traçar um itinerário daquilo que é bom de ser lido ou que deve ser lido como sem falta. O leitor é livre para ler o quiser. Também não é este texto um desabafo de escritor frustrado como muitos por aí que saem soltando impropérios contra escritor “X” e “Y” pelo fato de produzir uma bestialidade que vende tanto. Trata-se, isto sim, de um olhar aguçado para esse tipo de “fenômeno literário” e suas implicações na formação do leitor.

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Aquilo que eu apontava como uma nova fenomenologia na literatura não mais entendo como algo tão novo assim. Literatura comercial sempre existiu e muita coisa que foi produzida com esse rol noutra época hoje entra no rol dos clássicos, afinal essa coisa de cânone (espaço virtual em que estão alojadas as tidas obras-primas de uma literatura) é regido por uma política e suscetível aos meandros do tempo. Basta que lembremos ser o folhetim (comercializado semanalmente como encarte nos jornais) o berço do romance. Entretanto, não queiramos transpor tempos, espaços e situações para onde não cabem. Deixemos os anacronismos à parte. O cenário de hoje, seja pelo arcabouço econômico do qual fazemos parte, seja pela necessidade do lucro a curto prazo e a todo custo que este mesmo arcabouço nos impõe, é outro. Situamo-nos naquilo que Adorno chama de massificação da arte. Se noutro tempo vendeu-se escrita para viver, o escritor da época parece ter ignorado em parte o valor capital de sua escrita e produziu obras que iam na maré contrária da realidade ocupada por ele e chega a fazer dela objeto estético. Totalmente diferente daquilo que temos hoje: a escrita enquanto produção industrializada. Vivemos numa era em que o consumismo é tido como uma forma de exercer nossa cidadania – e vejamos bem, triste maneira de exercer  cidadania! – que até mesmo os valores pessoais adquiridos a longo prazo são substituídos numa banca de camelô na esquina de casa.  E nessa invasão desenfreada do capital e do toma-lá-dá-cá, a literatura tem sido mais um dos territórios-vítima. Não podia ser diferente. Afinal, quem escreve e faz da escrita profissão nessa era de exercício “diferenciado” da cidadania também carece exercer ele a sua cidadania, não?
  
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A tal “fenomenologia literária” não é novidade. É sim o auge de uma industrialização da escrita praticada antes como atividade manufatureira. Logo, é mais um resultado negativo dessa roleta financeira: determinado escritor descobre uma fórmula de produzir histórias vendáveis e só enforma uma após a outra, ad infinitum, se não fosse a existência humana tão curta. É possível que tais fenômenos literários sejam, futuramente, peças de museu. Ao que parece é mesmo o que serão. E algum arqueólogo (profissão que até lá talvez resista) na ânsia por precisar determinados modos de vida de um passado, se dê ao trabalho de escavar na poeira dessa leva de insignificâncias alguma coisa significante que diga quem éramos nós. Ou não. Talvez no futuro estaremos tão mais perdidos do que estamos hoje que estaremos vidrados em tais obras, imortalizando-as, brigando em congressos pelo sentido que delas emana. De futuro, nada sabemos. Apenas sabemos que, pelo entendimento que temos hoje, tais produções não se caracterizam como arte.

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Já quanto a segunda idéia que quero tratar aqui, essa de um caráter de formação crítica dos leitores por obra desses esvaziamentos literários, é algo que deve ser pensado com mais calma. É verdade que tais obras podem propiciar aos leitores em processo de formação um contato com o universo da leitura. Não quero negar isso, uma vez que, todo leitor busca ler aquilo que, no seu entendimento lhe traz algum entendimento sobre si e sobre o mundo do qual faz parte. Mas em termos de formação crítica, tais livros em nada acrescentam. Ao serem desprovidos do caráter artístico de problematização das coisas, tais livros mais reforçam determinadas conjunturas e exerce sobre os sujeitos uma docilização dos corpos. E sujeitos passivos são o combustível que sustenta a atual arcabouço social. O caráter que define a obra literária enquanto tal é a sua capacidade de problematizar o sentido aparente das coisas, é possibilitar estabelecer no leitor uma inquietude perante os movimentos obliterados por eles próprios ou pela sua coletividade seja nos espaços privados seja nos espaços sociais. Leituras como as de Augusto Cury, por exemplo, idealizam um mundo de fantasia em que os grandes problemas dos sujeitos e das formações sociais são transferido para debaixo do tapete por meio de constatações óbvias ou através de saídas fáceis. Não possibilita ao leitor a formação e desenvolvimento crítico, deixa-no apático, narcotizado diante do caos enquanto o caos se alastra. Se o mundo contemporâneo é invadido por uma ninhada de hipócritas, eis um exemplar raro de um carcomido pela hipocrisia que habita essa lata-mundo. A humanidade não precisa de conforto espiritual; precisa de desassossego, no real sentido que o Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa propõe. É o desassossego frente ao mundo que leva-o a mudança, não essa apatia ingênua do Cury. A realidade para ser mudada carece de que alguns discursos que estão aí fossilizados repetindo sem fim falsos moralismos e sobretudo falsas existências devem, sim, ser mexidos e não reforçados. Viver é manter-se inquieto perante a esses artefatos discursivos e não presos a eles como se eles ditassem mapas e bússolas aos quais devemos seguir obedientes em busca de uma salvação. Esse desconforto perante a realidade e esse espírito crítico só se é dado por uma única via, pela da leitura literária.


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