Melancolia, de Lars Von Trier


Por Pedro Fernandes

Cena do prólogo de Melancolia. O filme de Von Trier se dá no cruzamento de duas histórias. O quase estaticismo dos movimentos das imagens no prólogo - são para o expectador como como sonhos, delírios, que resumem o que vem a seguir.


O primeiro filme do diretor Lars Von Trier que tive oportunidade de assistir foi Dogville; o filme que se apropriou da técnica cenográfica brechtiana e mostrou ao cinema uma forma outra de se fazer filmes conceituais. Agora, em 2011, tenho oportunidade de ver Melancolia. E assim como me surpreendi com aquela incorporação teatral no cinema, agora me surpreendo com a incorporação do lirismo poético para a sétima arte. Não apenas pelas sequências das cenas do prólogo. (Aliás, está aí outro elemento literário mostrado na produção de Von Trier: Melancolia retoma o que foi feito em Dogville, o recurso da divisão da película em prólogo e capítulos.) Mas pela composição inteira do filme – perfeitamente invadida de imagens que, se fosse o caso de falar aqui de seus simbolismos, não ficaríamos, certamente, num curto post de impressões.

No prólogo, são apresentadas as personagens – Justine, que nomeia o primeiro capítulo, e Claire, que nomeia o segundo capítulo – e o cenário onde transcorrerá a trama, uma mansão que parece isolada de tudo e todos. Outra característica das produções de Von Trier: o deslocamento dos cenários, a suspensão dos espaços, apresentados estes não como retratos realistas dos espaços comuns, mas como legítimas formas metafóricas para tais espaços. E tudo regado ao estridente som de Wagner.

No primeiro capítulo ficamos a par do casamento de Justine. Atenção seja dada para a instalação do estágio de melancolia que vai tomar conta do filme desde seu prólogo. O casamento de Justine é uma típica festa de matrimônio – com jantar, valsa, discurso, corte de bolo... É o comportamento cansado da noiva nesse extenso itinerário o que faz a festa se prolongar por um tempo mais que devido. Se tudo no filme vai se contaminando pelo sentimento melancólico, nem o tempo, logo se vê, escapa desse movimento. Von Trier recobra aqui uma matéria um tanto quanto deslocada da contemporaneidade – a crise de relacionamentos duradouros e a quebra do casamento enquanto instituição. É esse um tema do realismo, claro está. Mas o modo como o cineasta se apropria dele é o que interessa aqui. O que Von Trier parece querer vislumbrar é o que se esconde por baixo do luxo. Se no realismo o interesse estava em vislumbrar o podre da burguesia, aqui o interesse está em vislumbrar que o acúmulo de bens e a riqueza desmedida tem, sim, sua moldagem nos castelos de cartas. Prendem seus sujeitos numa redoma de cristal impossível de ver o que está a sua volta. As aparências figuram aí como coisa mais importante que os sentimentos reais dos sujeitos. E tanto é verdade que o casamento, uma aparência, começa e finda no mesmo dia. E aqui se instala a metáfora maior para o uso de um casamento como composição à primeira parte do filme. É que sendo símbolo de união e união desfeita praticamente no mesmo ato de casar-se aponta para o real significado da película: Melancolia é a história de um fim iminente.

É no segundo capítulo do filme que o telespectador se dá conta do tema central do filme – a finitude. É quando sabemos que Melancolia é também um planeta em rota de colisão com a Terra. E é sobre o despertar do fim – no comportamento das personagens centrais do filme -- que Von Trier questiona acerca do fim necessário. Seja por necessidade, seja por um certo vento nietzschiano do fim como redenção. Ou ainda um tanto quanto trágico e decepcionado com o homem e seu modo de existência. E se estamos acostumados ao clichê do “foram felizes para sempre” em Von Trier nada é tão bem assim. O seu desencanto para com o desfecho das situações já se apresenta desde Dogville e em Melancolia – mesmo nos enganando com o afastamento do planeta da rota de colisão da terra – nada escapará. Se existe uma forma de vencer o caos, ela se encontra na capacidade humana de fundar seus próprios espaços de transcendência. Que fique claro que o transcender aqui não está no círculo daquele movimento de saída de si para conhecer-se, mas no sair de si, permanecendo em si para se chegar ao mundo que seja aquele que melhor lhe comporte. E aí recupero aqui a iniciativa “infantil” de Justine de recolher gravetos para montar uma caverna mágica pela qual todos os que estiverem nela serão salvos.

Melancolia, com certeza, iguala-se a Dogville enquanto experiência estética única para os que veem no cinema uma forma de arte.


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