Relembrar o dia um ano depois

Por Pedro Fernandes

José Saramago. Foto: João Francisco Vilhena.


Depois de sua morte, um escritor passa a ter, obrigatoriamente duas datas pelas quais se miram seus leitores para lembrá-lo - a de seu nascimento e a de sua morte. Há casos, é verdade, que não se lembram nem de uma nem de outra e são muitos os escritores que caem no limbo do esquecimento. Mas, como saramaguiano que me defino, não pertenço a esse clã dos esquecidos, apesar de não ser nenhum pouco dado com as datas. E é fato que neste 18 de junho fecha-se um ano em que os leitores de José Saramago ficaram tristes. "O tempo voa!" Disse de mim para mim quando me coloquei à frente desse dia.

A notícia sobre a morte de José Saramago me chegou naquela manhã por uma ligação telefônica no momento em que eu me preparava para ministrar uma aula no meu estágio de docência durante o Mestrado. Se nenhuma aula sai conforme o planejado aquela teve tudo para que destoasse a léguas. Quando desliguei o telefone e olhei para Janaina, minha amiga saramaguiana, que comigo estava na mesma situação de estágio, disse, "Você não sabe o que aconteceu...", e contei que Saramago havia morrido. Ficamos os dois de choro contido, bem sei. E tudo só veio fazer sentido mesmo quando, à noite, cheguei em casa, abri o computador e comecei a ler as notícias nos diversos sites de jornais, revistas, blogs etc. sobre o ocorrido. No mesmo instante, a reação que tive foi a de despir este blog das tradicionais cores azul, amarelo e branco e deixá-lo escuro até quando da cerimônia fúnebre em Lisboa.

Se estava até ali trabalhando numa dissertação sobre José Saramago, tudo se abriu para o gesto mais cobrado do escritor e da sua literatura: ação. E me lancei à criação de uma série de outros projetos além da pesquisa acadêmica. E todos eles vingaram: Um caderno para Saramago foi o primeiro deles. Um blog-site sobre o escritor, reunindo conteúdos e informações dispersos na web acerca do escritor, posto no ar em menos de 90 dias depois. Diagnósticos do presente em Chico Buarque, José Saramago e Jorge Reis-Sá, um curso que ministrei durante o I Colóquio Nacional de Estudos Linguísticos e Literários foi outro projeto. E, depois, Um universo de José Saramago - paisagens. Paralelo a isso tudo pensei em organizar um número especial do Caderno-revista 7faces, do qual sou editor.  O dia de hoje deveria ser a data na qual essa edição viria a lume, mas por insistência minha de que não seria suficiente um lançamento virtual - o número especial é eletrônico - resolvi unir forças para que ocorresse também o lançamento físico da ideia. E espero ser este um dia em eu possa recordar mais uma vez aos presentes todo esse itinerário, porque se há algo que me apetece falar, está aí uma pista: José Saramago e sua obra.

Já disseram outros leitores de Saramago que depois de o lermos fica difícil entrar numa livraria e encontrar outro escritor que nos arrebate tanto quanto fomos arrebatados pela sua literatura. E é verdade. E isso ocorre porque Saramago, antes de ser um escritor e inovador da arte literária, foi também um grande interventor. Quis ser um apartador de discursos e fundador de outras maneiras de olhar o mundo e as criações humanas. Esse diferencial fez dele mais que escritor, o fez porta-voz de muitos que não são ouvidos, seja porque o eco de sua voz não tem o alcance que a sua tinha, seja porque ainda estão presos ao chão da subserviência. Se um dos papéis da Literatura consiste em reinstalar a realidade para que possamos vê-la com outros olhos ou por outras formas, somos cientes que Saramago executou plenamente esse papel. O papel de desassossegar o leitor. Retirá-lo da sua inércia. E isso vem impresso no seu próprio gesto de reinventar a composição da narrativa, despindo-a dos protocolos da pontuação qual desenhada pela gramática e levando a escrita pela mesma correnteza do tom da oralidade. E é por esse legado do desassossego que sua obra deve sempre ser lida - quantas vezes for necessário - e discutida e, principalmente, lembrada.



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