Mente cativa, de Czesław Miłosz




Num livro de memórias fascinante, Mente cativa, o poeta Czesław Miłosz descreve o prodigioso processo de transformação ideológica que se produziu na Polônia depois da Segunda Guerra Mundial, quando os comunistas ocuparam o poder. Sem citar nomes, mas aludindo a vários casos verídicos, o escritor relata como intelectuais católicos ou socialistas iam pouco a pouco, dia a dia, artigo a artigo, mudando suas opiniões, até converterem-se em submissas cópias do modelo de intelectual orgânico que o regime comunista polonês havia desenhado para eles. Talvez, seja permitido fazer um paralelo entre o que viveram os poloneses com o que o Brasil viveu durante o período da Ditadura Militar.

É evidente que grande parte das adesões intelectuais que o governo dessa época recebe se devia a uma postura contundente frente ao comunismo (fantasma que terá assombrado a mente de muitos, claro, espalhado pelos militares em parceria com um regime nenhum um pouco melhor que o comunista, o capitalismo a mando dos Estados Unidos). Mas, entre nós, os que estiveram ao lado do regime foram trabalhados ideologicamente para assinalar como fundamental todo e qualquer desmando do poder e os que se opuseram ao regime primavam, tal como os poloneses, por uma democracia. Em toda frente de ditadura já ficou provado que o poder tem uma vocação para desqualificar sistematicamente as opiniões contrárias a ele, além, é claro, de persegui-las sistematicamente até forçá-las ao exílio ou desaparecer com a voz que se ergue fora do poder (as coisas não têm ido muito longe nos regimes democráticos, é verdade, mas, há uma condição palpável na atualidade, a possibilidade de divergir e até a divergência ser um motor do que está no poder no intuito de aperfeiçoar melhor sua relação com os elementos sociais).

Mas, Mente cativa quando publicado não sofreu censura apenas do regime; as autoridades europeias também chegaram a criticar a obra. Os exilados poloneses e os existencialistas franceses como Jean Paul-Sartre carregaram as tintas contra esta “crítica da esquerda aos regimes totalitários”. O livro foi ganhar o gosto (e até tornou-se herói nacional) dos indonésios que lutavam contra Sukarno e, claro, teve alguns defensores notáveis como Karl Jaspers e Gombrowicz. Com o passar do tempo tornou-se um clássico que não perde a vigência; afinal, é não apenas um registro histórico, mas um alerta para a geração atual e as gerações futuras a conservar-se sempre em suspeita sobre qualquer governo, justo porque analisa os diversos fatores que arrastaram o intelectual (tido como o de mente aberta) à aceitação do horror.

Mas, por que a posição dúbia de aceitação de Mente cativa em seu tempo? Bem, alguns exilados poloneses, por exemplo, sustentavam que o autor se disfarçava com a intenção de conseguir dos que haviam deixado o regime ou eram contrários a ele a desenvolverem uma compreensão que os levassem, de volta, a aceitar aquilo como sistema social válido. Já os comunistas tinham pela obra a ojeriza por alguém que trai o regime para se torna capacho dos inimigos.

O livro que ora chega pela editora Novo Século integra o rol daqueles necessários a formação crítica contra o totalitarismo no mesmo nível do que são 1984, de George Orwell, por exemplo, ou Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Um clássico que rompeu os limites do tempo e continua sendo lição necessária.

A polêmica da edição desleixada de Mente cativa

Enquanto pesquisava informações sobre o livro de Czesław Miłosz - encontrei com uma postagem no excelente não gosto de plágio da tradutora Denise Bottmann apontando uma série de irregularidades quanto às informações sobre a tradução de Mente cativa pela Novo Século. A tradutora deu pela falha quando na ficha de catalogação o título designado como traduzido do polonês por Jane Zielonko detectava o título original The captive mind. Foi quando percebeu que, ao invés de ter sido da língua original de Miłosz o texto é uma tradução do texto em inglês feita por Dante Nery. Fica o adendo e o alerta ao leitor. O livro não foi traduzido do polonês. Cá, tenho sido inocente, infelizmente, em acreditar no peixe que dizem vender na feira. Ficarei mais atento da próxima vez e, claro, o registro ao leitor. 

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