Um fragmento de "As intermitências da morte" e dois solos de violoncelo

Eram onze horas quando a campanhia da porta tocou. Algum vizinho com problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se para ir abri. Boas noites, disse a mulher do camarote, pisando o limiar, Boas noites, respondeu o músico, esforçando-se por dominar o espasmo que contraía a glote, Não me pede que entre, Claro que sim, faça o favor. Afastou-se para a deixar passar, fechou a porta, tudo devagar, lentamente, para que o coração não lhe explodisse. Com as pernas tremendo acompanhou-a à sala de música, com a mão que tremia indicou-lhe a cadeira. Pensei que já se tivesse ido embora, disse, Como vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas partirá amanhã, A isso me comprometi, Suponho que veio para trazer a carta, que não a rasgou, Sim, tenho-a aqui nesta bolsa, Dê-ma, então, Temos tempo, recordo ter-lhe dito que as pressas são más conselheiras, Como queira, estou ao seu dispor, Di-lo sério, é o meu maior defeito, digo tudo sério, mesmo quando faço rir, principalmente quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe um favor, Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto, Não vejo de que maneira, Tem ali um piano, Nem pense nisso, sou um pianista medíocre, Ou o violoncelo, É outra coisa, sim, poderei tocar-lhe uma ou duas pelas se faz muita questão, Posso escolher, perguntou a mulher, Sim, mas só o que estiver ao meu alcance, dentro de minhas possibilidades. A mulher pegou no caderno da suite de número seis de bach e disse, Isto, É muito longa, leva mais de meia hora, e já começa ser tarde, Repito-lhe que temos tempo, Há uma passagem no prelúdio em que tenho dificuldades, Não importa, salta-lhe por cima quando lá chegar, disse a mulher, ou nem será preciso, vai ver que tocará ainda melhor que rostropovitch. O violocelista sorriu, Pode ter certeza. Abriu o caderno sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as cordas e começou.



De mais sabia ele que não era rostropovitch, que não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um programa assim exigia, mas aqui, perante esta mulher, com seu cão deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de música, de partituras, era o próprio johann sebastian bach compondo em cöthen o que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas quase tantas como foram as da criação. A passagem difícil foi transposta sem que ele se tivesse apercebedio da proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar, cantas, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovitch, esta sala de música, esta hora, esta mulher.



Quando ele terminou, as mãos dela já estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam.

* SARAMAGO, José. As intermitências da morte. Lisboa: Editorial Caminho, 2005, p.212-213


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