Zila Mamede, alma potiguar

Por Pedro Fernandes

Zila Mamede

A trajetória de Zila Mamede e sua carreira de poeta são complementares, como bem já observou Tarcísio Gurgel: "De menina pobre e tímida de Currais Novos, até a profissional exemplar na área de biblioteconomia; da jornalista levemente arrogante, que publicava seus próprios poemas na coluna que assinava na 'Tribuna do Norte' até a poetisa consagrada em 'Exercício da palavra' verifica-se uma conjugação de fatores biográficos e literários que, intercomplementando-se, acabariam por transformá-la no nome hoje admirado por todos os que conhecem sua obra", assinala o estudioso. 

Zila nasceu em Nova Palmeira na Paraíba, em 1928, mas muito cedo veio para o Rio Grande do Norte.

Ela aparece no cenário das letras potiguares "em 1953, quando o neoparnasianismo de 45 espalhava prodigamente suas flores de retórica", com 'Rosa de Pedra'.

Além deste livro de que o escritor Ney Leandro de Castro, em devida citação, se refere, Zila ainda escreveu 'Salinas' (1958), 'O arado' (1959), 'O exercício da palavra' (1974), 'Corpo a corpo' (1977) e 'A herança' (1984), sendo que em 1978, a poeta reúne todas as obras, à exceção desta última, numa antologia a qual chamou de 'Navegos'.

Rosa de Pedra

'Rosa de Pedra' é marco no cenário da literatura brasileira. Por essa época se falava duma Geração Pós-45, advinda dos veios recifenses e também da região centro-sul do País, principalmente do Rio.

O livro seria lançado em 1951 não fosse a falência da Editora Hipocampo, dos poetas Geir de Campos e Thiago de Mello, pela qual seria publicado, dois anos mais tarde pela Imprensa Oficial do Rio Grande do Norte.

Este livro é considerado marco por vários motivos. Primeiro é inegável, a secura das palavras do título, escolhido ironicamente ou não, que marca toda a estética da poesia que se derrama em 'Rosa de Pedra', frente à poesia que circulava até então, cheia de requififes e floreios retóricos à moda neoparnasiana.

O segundo motivo é a ressurreição operada pela poeta ao corpo do soneto, injetando-lhe novas forças. Terceiro, a inauguração, na poesia nacional, de constâncias temáticas e uma espécie de lirismo ingenuamente surrealista, como nos atesta Paulo de Tarso em seu prefácio 'Zila Mamede - itinerário e exercício da poesia' à antologia mamediana 'Navegos', a que falamos de 1978.

O Mar

Há nesta obra, além dessas qualidades já ressaltadas pela crítica, dois movimentos marítimos que a cortam ponta a ponta: da paisagem interior ao mar, 'marés da infância' e 'mar absoluto', infância e mar, o que não faz esta obra restringir-se a eles, é verdade.

O mar ocupa uma forma capitular à parte na obra e na vida da escritora. O mar e a infância. Mais aquele que esta. Aquele, inclusive está dentro desta - 'marés da infância'.

O mar exerceu verdadeiro fascínio desde sua infância. Uma espécie de atração ou de desejo a Miguelim de Guimarães Rosa em "Campo Geral": "Mãe, que é que o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe nunca tinha avistado o mar, suspirava. Pois mãe, então mar é o que a gente tem saudade?" - Conta que as crianças voltavam de suas férias à beira-mar relatando seus episódios praieiros e para Zila, só restava-lhe imaginar.

Viajando certa vez para o Recife, viu a superfície ondulada que se movimentava com o sopro do vento. Perguntou ao pai se era o mar. Era o canavial. O mar veria horas depois.

Dos treze anos ao fim da vida estaria em frente ao oceano. Seja para as diárias caminhadas na Praia do Forte, em Natal. Seja para a natação. Seja para a morte quando nele, no mar, e nela, na morte, mergulhou em 13 de dezembro de 1985.

Mas nem só de mares vive "Rosa de Pedra". Como afirmado antes, a poesia de "Rosa de Pedra" inaugura nova faceta à poesia brasileira.

Basta reparar nas raízes de uma pesquisa lexicográfica que viria ser empreendida pela poeta nas publicações que se seguem a esta obra. Também é na fertilidade da palavra onde reside a preocupação da poeta. Palavra, que ao modo João Cabral de Melo Neto, de quem a autora publicou um afinco estudo intitulado "Civil geometria", merecia ser esculpida, trabalhada, inseminada de óvulos férteis a ponto de engravidá-la ao extremo, a ponto de o signo lingüístico não caber em si. Habita em "Rosa de Pedra" o singelo. O leve e o pesado de Ítalo Calvino.

'Rosa de Pedra', antes de deixar entrever o "modus" mamediano de poetar, deixa entrever por suas pétalas ásperas e macias o que daria mote a seu percurso temático adensado nas obras posteriores.

E por isso rosa. E por isso pedra. A obra posterior é o esculpir da pedra. O talhar da rosa.

Outras obras

Além das obras já referidas, Zila ainda lançou-se na tarefa de organizar a gigantesca leva de informações acerca da obra de Câmara Cascudo. O resultado foi três tomos intitulados "Luís da Câmara Cascudo - 50 anos de vida intelectual", publicado pela Fundação José Augusto em 1970.

No mais, a sua poesia é bela. Bela e singela. Obra mestra. Lírica organizada. Correspondendo, por assim dizer, ao seu ofício enquanto bibliotecária. Sua obra é um risco firme, "como se, definitivamente segura da sua vocação poética, ela traçasse o rumo a seguir e fosse, na medida em que as necessidades o exigissem modificando roteiros, o que se torna bastante visível na evolução que o seu verso conhece, por exemplo, desde a influência da 'Geração de 45' até o despojamento, a simplicidade e, sobretudo, a objetividade que são as marcas da influência de João Cabral de Melo Neto e, por fim, a corajosa retomada da emoção" (Tarcísio Gurgel). Rosa de Pedra, portanto.


* Este Texto foi publicado no caderno Domingo, do Jornal De Fato, em 14 de dezembro de 2009.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #580

Boletim Letras 360º #574

Clarice Lispector, entrevistas

Palmeiras selvagens, de William Faulkner

Boletim Letras 360º #579