Mar de leite



Por Pedro Fernandes




Um dia normal numa cidade. Numa esquina o sinal fecha. Os carros parados esperam o sinal mudar. O sinal verde acende-se. Um dos carros, no entanto, não se move. Buzinas enfurecidas. Gente enfurecida. Batem furiosamente nos vidros fechados do carro ali parado. Lá dentro um homem vira a cabeça para eles. Percebe-se pelo movimento da boca do motorista duas palavras – “Estou cego”.

O sentimento de angústia com que segue a trama é o mesmo que aqui se instala. O sentimento de angústia que segue nessa cena é o mesmo que senti na cadeira do cinema ao assistir Blindness, filme baseado na obra Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago – romance que ao lado dos outros anteriores a esse lhe rendeu o Nobel, há dez anos. Romance que rende uma incontável dúzia de discussões. O sentimento de angústia que senti na cadeira do cinema é o mesmo que senti nas cadeiras por onde estive a ler o romance.

Um mar de leite que vai inundando pouco a pouco os indivíduos de uma sociedade. A instalação duma treva branca que aos poucos vai transformando uma sociedade em paredes de vento. Uma cegueira branca. Diferente da cegueira comum. Uma cegueira total. Absurda. Aparentemente inexplicável. Que não tem a ver com contágio – apesar de assim se fazer crer. Uma cegueira que atinge a todos ou quase todos os habitantes de uma cidade onde apenas uma mulher não cega. Uma cegueira que aos poucos vai tornando a vida diária absolutamente inviável. Que reduz a humanidade às necessidades e afetos mais básicos. Um progressivo obscurecimento e correspondente iluminação das qualidades e dos terrores do homem.

Inegável é que essa cegueira branca que aqui se instala é alegórica – está o narrador a contar “isto” para significar “aquilo”. Não haveremos de fugir disso. Logo, o que essa cegueira vem representar, do modo violento que se mostra, é a encenação física de uma cegueira moral que hoje e sempre contagia insidiosamente a raça humana. Não estamos distante da carnificina instalada com a cegueira branca no romance saramaguiano.

Este romance é a visão papável das trevas. Uma descida ao inferno. Uma descida aos estágios mais profundos a sociedade humana. A história de uma resistência possível em tempos escuros. O tempo nosso. O tempo onde imperam a ganância e abstinência moral. Este romance vem nos lembrar da “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. A responsabilidade de olhar. De ver. Não só de ver. Mas de ver e de reparar.

Do conjunto de questões que esse livro agora adaptado em filme vem nos trazer parece ser o entendimento de que hoje padecemos da mesma cegueira relatada com detalhes de crueza e requinte de beleza pelo autor. Ou senão pior, quando nos damos conta de que vivemos numa sociedade cuja mesquinharia, a hipocrisia, corrói como um caruncho suas engrenagens. E não só isso. O que essa cegueira branca vem nos mostrar é que essa nossa sociedade, apesar de julgar-se organizada não passa de um caos. De que a realidade é produto construído socialmente.

Em meio à cegueira total, só uma personagem, a mulher do médico, não cega. Ela é a que aponta o caminho dos que perto dela acomodam-se. Ela é a que aponta-nos em meio ao caos um último elo para o restabelecimento da ordem. Ela – “a que nasceu para ver o horror” – também é a que nasceu para desmistificar a crença que até então todos tinham de que a cegueira se dava pela via do contágio. Logo, ela é quem nos aponta para o entendimento de que é o medo o condutor hoje dos homens e do poder. “O medo cega. Já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos”.

Esse Ensaio sobre a cegueira não é senão um ensaio sobre a visão. É ele um manual do ver. É ele um texto que nos ensina a ver. Ao chegar ao fundo do poço esses cegos puderam ver suas fraquezas. Sua arrogância. Sua violência. A monstruosidade que sempre foram e nunca haviam percebido antes. Ao mesmo tempo viram que se é pela própria força, pela solidariedade, pela generosidade, sobretudo, pela humanidade que se revela a possibilidade de enxergar para além das aparências.

O que este romance vem apontar é a reflexão de que a responsabilidade deve vencer o medo. Que o modo de sociedade que vimos construindo precisa ser repensado. Que a suspeição de valores requer de nós também revisão. E, sobretudo, da importância de uma ética frente a hipocrisia reinante nesses momentos de maior degradação; a consciência de ser nossa a responsabilidade de evitar a crise que é a de continuar tudo como está: “Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.”

Ligações a esta post:
Veja vídeo com a reação do escritor José Saramago ao ver o filme Ensaio sobre a cegueira


* este artigo foi publicado no caderno Domingo do Jornal De Fato em 06 de novembro de 2008 e no blog Substantivo Plural.

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