Machado de Assis, a segunda vida

Por Pedro Fernandes




Há cem anos, feitos exatos às 3h20min da madrugada deste dia 29 de setembro – não tão exatos porque não vivemos num tempo absoluto – o Rio de Janeiro e o País perdia seu filho mais ilustre, Joaquim Maria Machado de Assis, mais conhecido como Machado de Assis. Desde quando sua esposa morreu, quatro anos antes, que o escritor já não era mais o mesmo, ainda que freqüentasse diariamente a Academia Brasileira de Letras, que ajudara a fundar em 1896, e da qual fora eleito presidente primeiro e perpétuo, ainda que aparentasse o prazer de viver ao lado dos amigos, Machado já se esvaía por dentro. Vista fraca, infecção intestinal, uma úlcera na língua. Tudo culminaria com sua morte.

“Estou à beira do eterno aposento” – disse Machado pouco antes de morrer. No enterro, o cortejo fúnebre que acompanhou o corpo do escritor se compunha de figuras ilustres e do povo; atestava a fama que Machado havia alcançado. Anos mais tarde seus restos mortais eram levados para serem sepultados ao lado de sua esposa Carolina – “Querida, ao pé do leito derradeiro/ Em que descansas dessa longa vida,/Aqui venho e virei, pobre querida,/ Trazer-te o coração de companheiro.” (“À Carolina”)

Mas essa fama que o escritor brasileiro levava sob um Rio enlutado, dum Rio que tanto proseou nos seus romances, contos e crônicas, não foi conseguida a base de lances de sorte, sucesso imediato ou consagração instantânea. Machado, um mulato, foi uma criança pobre, neto de escravos alforriados – o Brasil só libertaria seus escravos em 1888, com a lei Áurea –, nascido no morro carioca e desde cedo já confessava sentir “umas coisas estranhas” – talvez as raízes da epilepsia e ainda, como atestam algumas biografias suas, também padecia duma gagueira. Logo, é ele marco também quando nos referirmos à sua trajetória de vida, tendo em vista que numa sociedade marcada por divisões sociais muito rígidas como a nossa – e como já era o Brasil por essa época – o sujeito já nasce com seu destino traçado, determinado pela raça, pela origem. E, no caso de Machado, marcado ainda pela possibilidade de freqüentar ou não o ambiente escolar.

Começa na literatura pelos jornais. Em 1855, o jornal Marmota Fluminense publicava os versos de “A palmeira” – “Tenho a fronte amortecida/ Do pesar acabrunhada!/ Sigo os rigores da sorte,/ Nesta vida amargurada”. Este jornal era na época editado numa livraria que era o ponto de escritores da época, como Paula Brito, dono da livraria e do jornal, e Manuel Antônio de Almeida, já romancista conhecido. Desse convívio, Machado acaba por tornar-se membro da redação, sendo a porta de entrada para outras publicações e para outros jornais. Antes o adolescente Machado apenas vivia encantado com as elegâncias da Rua do Ouvidor, onde certamente trabalhava como caixeiro e tipógrafo, antes de tornar-se cronista e passasse esses encantos e percepções através das crônicas, num estilo irônico, que logo mais tarde o consagraria enquanto romancista.

Da fase dos romances, Machado, produziu, inquestionavelmente, uma obra-prima. Marco na literatura brasileira. Memórias póstumas de Brás Cubas, 1881, é a obra do auge da carreira literária do escritor; Dom Casmurro, dezoito anos depois, eternizaria um debate acerca do adultério – teria Capitu traído Bentinho? E o que dizer dos seus indecifráveis olhos de ressaca? Além do debate em torno dos regimes políticos, religiosos e sociais, dos bons e maus costumes – estes últimos, principalmente – da sociedade carioca e brasileira, acerca das fraquezas, tiques maníacos, loucuras e razões humanas. Tudo em ritmo de uma escrita que tão importante quanto ela, o país só viria a ter bem mais tarde, com um Graciliano Ramos ou com um Guimarães Rosa. A tudo isso se soma o espírito cavernosamente crítico e pessimista em relação à face negativa do comportamento humano, do homem em si e da vida, esquecendo do que a hipocrisia social chama pelos sentimentos de bondade e de grandeza.

E tudo isso daria ainda muito que falar quando depois de sua morte. Na verdade a vida do escritor começa postumamente, porque aos olhos da crítica, seja ela especializada ou não na obra do escritor, muito do que já se tem dito acerca desse gênio foi postumamente. E, certamente, muito ainda se tem por dizer, haja vista ser, o objeto literário, fonte inesgotável de questionamentos e percepções. Tanto que, mesmo passado cem anos de sua morte e, mais de um século de seus escritos, estes ainda aparecem como tão vivos que, parece está o escritor a vivenciar essa sociedade. Isso se justifica em parte pelo olho perspicaz do escritor, em parte porque parece que nunca a humanidade evoluiu, antes tem aperfeiçoado sua hipocrisia.

Não há um último capítulo que se possa redigir acerca de Machado, antes uma vida que, em cem anos de estado póstumo, sempre se recicla e se ressuscita; ou talvez nunca se torne desgastada para ser reciclada, muito menos morta para que se ressuscite.

* Este artigo foi publicado no dia 29 de julho de 2008 no Jornal Correio da Tarde, p. 2.

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