Cidadão Kane, de Orson Welles




Inventividade formal e narrativa são as chaves que fizeram o filme ocupar o lugar divino do céu da cinefilia

Só mesmo o talento de fora do cinema para revolucionar a linguagem cinematográfica quando essa já se encontrava próxima de ter meio século de existência. Ator desde adolescente, diretor de teatro e de programas de rádio em seguida, Orson Welles encarna todos os estereótipos do gênio precoce. Para arrematar a fama, estreou no cinema aos 25 anos de idade, dirigindo Cidadão Kane, obra que ocupa a posição de Deus no céu da cinefilia.

Segundo palavras do próprio Welles, o filme “conta a investigação feita por um jornalista para descobrir o significado das últimas palavras de Kane [um magnata da imprensa livremente inspirado no milionário e dono de jornais Willian Randolph Hearst]. Na visão do repórter, as últimas palavras de um homem devem explicar sua vida. O que talvez seja verdade. Ele nunca chega a descobrir o que Kane quis dizer com a palavra ‘Rosebud’, mas o público descobre. Sua investigação leva-o a se aproximar de cinco pessoas que conheceram bem Kane, que o amaram e que o detestaram. Elas lhes conta, histórias diferentes, cada uma de um ponto de vista parcial, de tal modo que a verdade sobre Kane só pode ser deduzida pela soma de tudo o que foi dito sobre ele, como aliás qualquer verdade sobre um indivíduo”. O roteiro engenhoso traz a assinatura de Welles e de Herman J. Mankiewicz.

A sobreposição de diferentes focos é resolvida, na estrutura do filme, por meio da ruptura com padrões bem estabelecidos da indústria, como a narrativa linear, a definição clara da psicologia dos envolvidos e a sobriedade no recurso a simbolismos e extravagâncias visuais. E é essa atitude de desobediência a códigos definidos e a invenção visual e narrativa que transformam o filme numa fabulação cinematográfica da vida de seu personagem em vez de simplesmente uma crônica de fatos pessoais narrada com início, meio e fim.

Além disso, vários elementos formais identificam sua singularidade: o uso dramático da profundidade de campo, o recurso do flash-back para narrar distintos pontos de vista de um mesmo indivíduo e a presença visual do teto nos cenários em contraponto à posição baixa da câmera cujo efeito é ampliar a estrutura do significado dos personagens. As soluções visuais são atributos do genial diretor de fotografia, Gregg Toland.

Já experiente em recursos sonoros depois de seus trabalhos não rádio, Welles também acentuou o visual da obra com efeitos dramáticos, como barulho da chuva batendo no telhado de vidro, os passos no silêncio da biblioteca e a sobreposição de vozes que transforma em cacofonia as diversas falas que se misturam no tempo.



Nem tudo, porém, se explica pela genialidade de seu diretor. Welles se preparou para a tarefa de sua estréia em Hollywood estudando a linguagem dos clássicos, em vistas freqüentes ao acervo da Cinemateca de Nova York. E por todo um ano antes de começar as filmagens, ele visitou bastidores de outras produções para aprender segredos técnicos. Com essa experiência, ele importou recursos visuais e narrativos que haviam sido usados por outros cineastas, mas deu a eles uma personalidade, uma caligrafia única; em resumo, um estilo.

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Nota: Essa lista foi publicada numa edição especial da revista brasileira BRAVO! No total são 100 filmes. Para elaborar a lista, a revista tomou como base os resultados já consagrados nas escolhas de melhores de todos os tempos divulgados em mídias como o jornal The New York Times, as revistas TimeSight & Sound e Cahiers du Cinema e o American Film Institute. A definição segundo o editorial da revista levou em consideração títulos que misturam "o erudito e o popular, o sofisticado e comercial, o inventivo e o eficaz". Levou-se em consideração também o fato de estes filmes terem marcado época, por razões estéticas e de receptividade do público.


* Revista BRAVO!, 2007, p. 10.


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